Yom Kipur: sem perdão! (2020)


 Yom Kipur: sem perdão!

(Uma leitura vegana)


Na data de hoje, por todo o mundo, os seguidores da religião judaica estão celebrando o Yom Kipur, o “dia do perdão”. Trata-se de um dia de completo jejum. A crença é que, por via do jejum, Deus expiaria os pecados cometidos no ano anterior (o ano novo judaico ocorre dez dias antes do Yom Kipur).

Yom Kipur é a data mais importante do calendário judaico. O dia em que os humanos e Deus estariam mais próximos. Assim como o Natal para os católicos, é uma daquelas datas nas quais todo indivíduo que herdou um rótulo religioso de seus pais, mas não considera a religião para nada na vida, une-se a sua família para, por um dia, simular uma identidade inexistente. Isso quer dizer que este é o tipo de data respeitada e valorizada por um número de pessoas muito maior do que o número de religiosos reais.

Assim sendo, milhões de judeus estão, neste momento, jejuando para seguir a tradição. Tive a curiosidade de procurar no texto básico da religião judaica, o Velho Testamento bíblico, a origem dessa tradição. A origem, neste caso, foi a “boca” do próprio Deus. As instruções aparecem em mais de uma passagem, complementando-se.

Primeiramente, encontramos as instruções para o dia do perdão no livro de Levítico, capítulo 16, onde lê-se:

29. Também isto vos será por estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez do mês, afligireis as vossas almas, e não fareis trabalho algum, nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vos; 30. porque nesse dia se fará expiação por vós, para purificar-vos; de todos os vossos pecados sereis purificados perante o Senhor. 31. Será sábado de descanso solene para vós, e afligireis as vossas almas; é estatuto perpétuo. 32. E o sacerdote que for ungido e que for sagrado para administrar o sacerdócio no lugar de seu pai, fará a expiação, havendo vestido as vestes de linho, isto é, as vestes sagradas; 33. assim fará expiação pelo santuário; também fará expiação pela tenda da revelação e pelo altar; igualmente fará expiação e pelos sacerdotes e por todo o povo da congregação. 34. Isto vos será por estatuto perpétuo, para fazer expiação uma vez no ano pelos filhos de Israel por causa de todos os seus pecados. E fez Arão como o Senhor ordenara a Moisés.

 

Para tal expiação pelo santuário, pela tenda, pelo altar, pelos sacerdotes e pelo povo, o texto fornece as instruções logo antes, no mesmo capítulo. A citação é grande, mas, considerando que a maioria dos judeus e cristãos não lê o livro que embasa suas identidades religiosas, sugiro que seja completamente lida. Tente não vomitar:

1. Falou o Senhor a Moisés, depois da morte dos dois filhos de Arão, que morreram quando se chegaram diante do Senhor. 2. Disse, pois, o Senhor a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre em todo tempo no lugar santo, para dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a arca, para que não morra; porque aparecerei na nuvem sobre o propiciatório. 3. Com isto entrará Arão no lugar santo: com um novilho, para oferta pelo pecado, e um carneiro para holocausto. 4. Vestirá ele a túnica sagrada de linho, e terá as calças de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com o cinto de linho, e porá na cabeça a mitra de linho; essas são as vestes sagradas; por isso banhará o seu corpo em água, e as vestirá. 5. E da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes para oferta pelo pecado e um carneiro para holocausto. 6. Depois Arão oferecerá o novilho da oferta pelo pecado, o qual será para ele, e fará expiação por si e pela sua casa. 7. Também tomará os dois bodes, e os porá perante o Senhor, à porta da tenda da revelação. 8. E Arão lançará sortes sobre os dois bodes: uma pelo Senhor, e a outra por Azazel. 9. Então apresentará o bode sobre o qual cair a sorte pelo Senhor, e o oferecerá como oferta pelo pecado; 10. mas o bode sobre que cair a sorte para Azazel será posto vivo perante o Senhor, para fazer expiação com ele a fim de enviá-lo ao deserto para Azazel. 11. Arão, pois, apresentará o novilho da oferta pelo pecado, que é por ele, e fará expiação por si e pela sua casa; e imolará o novilho que é a sua oferta pelo pecado. 12. Então tomará um incensário cheio de brasas de fogo de sobre o altar, diante do Senhor, e dois punhados de incenso aromático bem moído, e os trará para dentro do véu; 13. e porá o incenso sobre o fogo perante o Senhor, a fim de que a nuvem o incenso cubra o propiciatório, que está sobre o testemunho, para que não morra. 14. Tomará do sangue do novilho, e o espargirá com o dedo sobre o propiciatório ao lado oriental; e perante o propiciatório espargirá do sangue sete vezes com o dedo. 15. Depois imolará o bode da oferta pelo pecado, que é pelo povo, e trará o sangue o bode para dentro do véu; e fará com ele como fez com o sangue do novilho, espargindo-o sobre o propiciatório, e perante o propiciatório; 16. e fará expiação pelo santuário por causa das imundícias dos filhos de Israel e das suas transgressões, sim, de todos os seus pecados. Assim também fará pela tenda da revelação, que permanece com eles no meio das suas imundícias. 17. Nenhum homem estará na tenda da revelação quando Arão entrar para fazer expiação no lugar santo, até que ele saia, depois de ter feito expiação por si mesmo, e pela sua casa, e por toda a congregação de Israel. 18. Então sairá ao altar, que está perante o Senhor, e fará expiação pelo altar; tomará do sangue do novilho, e do sangue do bode, e o porá sobre as pontas do altar ao redor. 19. E do sangue espargirá com o dedo sete vezes sobre o altar, purificando-o e santificando-o das imundícias dos filhos de Israel. 20. Quando Arão houver acabado de fazer expiação pelo lugar santo, pela tenda da revelação, e pelo altar, apresentará o bode vivo; 21. e, pondo as mãos sobre a cabeça do bode vivo, confessará sobre ele todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todas as suas transgressões, sim, todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode, e enviá-lo-á para o deserto, pela mão de um homem designado para isso. 22. Assim aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles para uma região solitária; e esse homem soltará o bode no deserto. 23. Depois Arão entrará na tenda da revelação, e despirá as vestes de linho, que havia vestido quando entrara no lugar santo, e ali as deixará. 24. E banhará o seu corpo em água num lugar santo, e vestirá as suas próprias vestes; então sairá e oferecerá o seu holocausto, e o holocausto do povo, e fará expiação por si e pelo povo. 25. Também queimará sobre o altar a gordura da oferta pelo pecado. 26. E aquele que tiver soltado o bode para Azazel lavará as suas vestes, e banhará o seu corpo em água, e depois entrará no arraial. 27. Mas o novilho da oferta pelo pecado e o bode da oferta pelo pecado, cujo sangue foi trazido para fazer expiação no lugar santo, serão levados para fora do arraial; e lhes queimarão no fogo as peles, a carne e o excremento. 28. Aquele que os queimar lavará as suas vestes, banhara o seu corpo em água, e depois entrará no arraial.

 

Sacrifício de animais, aspersão de sangue, abandono de animais no deserto para morrerem de fome e sede (entregues para Azazel, um demônio que viveria no deserto)... Como um judeu ou cristão lida tranquilamente com o fato de que esses são os desejos expressos pelo próprio Deus em parte considerável dos livros das leis?

E como é possível que esse texto dialogue com a identidade de milhões de pessoas mundo afora ainda hoje?

O mesmo livro de Levítico, no capítulo 23, fornece novamente as instruções para o Yom Kipur:

26. Disse mais o Senhor a Moisés: 27. Ora, o décimo dia desse sétimo mês será o dia da expiação; tereis santa convocação, e afligireis as vossas almas; e oferecereis oferta queimada ao Senhor. 28. Nesse dia não fareis trabalho algum; porque é o dia da expiação, para nele fazer-se expiação por vós perante o Senhor vosso Deus. 29. Pois toda alma que não se afligir nesse dia, será extirpada do seu povo. 30. Também toda alma que nesse dia fizer algum trabalho, eu a destruirei do meio do seu povo. 31. Não fareis nele trabalho algum; isso será estatuto perpétuo pelas vossas gerações em todas as vossas habitações. 32. Sábado de descanso vos será, e afligireis as vossas almas; desde a tardinha do dia nono do mês até a outra tarde, guardareis o vosso sábado.

 

Sobre tal “oferta queimada", o livro de Números a explícita:

7. Também no dia dez deste sétimo mês tereis santa convocação, e afligireis as vossas almas; nenhum trabalho fareis; 8. mas oferecereis um holocausto, em cheiro suave ao Senhor: um novilho, um carneiro e sete cordeiros de um ano, todos eles sem defeito; 9. e a sua oferta de cereais, de flor de farinha misturada com azeite, três décimos de efa para o novilho, dois décimos para o carneiro, 10. e um décimo para cada um dos sete cordeiros; 11. e um bode para oferta pelo pecado, além da oferta pelo pecado, com a qual se faz expiação, e do holocausto contínuo com a sua oferta de cereais e as suas ofertas de libação.

 

Eis aí a origem do Yom Kipur e a verdadeira orientação de Deus para esse dia. Se você, leitor, lesse as passagens acima sem nenhuma identidade religiosa imposta pelo vínculo familiar, as assumiria, prontamente, como nobres verdades advindas da fonte do supremo bem?

Vale ressaltar que o dia do perdão é apenas um dos muitos eventos nos quais especifica-se a obrigação do sacrifício de animais na Bíblia – esse tema é um dos mais presentes nos livros das leis - e o sacrifício de animais é só um dos muitos absurdos morais defendidos e incentivados por tal livro. Como exemplo, vejamos o que o livro de Ezequiel, no capítulo 45, fala sobre Pessach, a Páscoa judaica, a data mais importante do calendário após Yom Kipur:

21. No primeiro mês, no dia catorze de mês, tereis a páscoa, uma festa de sete dias; pão ázimo se comerá. 22. E no mesmo dia o príncipe proverá, por si e por todo o povo da terra, um novilho como oferta pelo pecado. 23. E nos sete dias da festa proverá um holocausto ao Senhor, de sete novilhos e sete carneiros sem mancha, cada dia durante os sete dias; e um bode cada dia como oferta pelo pecado.

Sem a força das tradições religiosas sobre a psique humana, alguém seguiria tranquilamente uma orientação como essa?

Como, após ler atentamente tal texto, como fazem os religiosos judeus e cristãos, alguém segue o considerando um guia fundamental para a moralidade humana ou para a organização da vida social? Do que exatamente falam, então, os defensores da “moral judaico-cristã”?

Como considerar a Bíblia como um livro de moral ou o Deus lá representado como o suprassumo do bem e da justiça, posto que esse livro defende abertamente o sacrifício e o abandono de animais, o genocídio[1], a escravidão[2], a misoginia[3] e o estupro[4], entre outros absurdos?

Assombra-me e inquieta-me tentar entender como encaixar em uma mesma pessoa a crença na sacralidade desses textos e filosofias tão sutis sobre ética ou diálogo, como vemos em alguns pensadores judeus e cristãos (dos quais nutro-me de muitas ideias).

Parece-me que há tanto esforço em debater e criar ideias profundas nas tradições judaica e cristã justamente porque é preciso muito esforço para justificar os textos originais dessas tradições e transformá-los em algo sábio. É uma tese.

O Yom Kipur, portanto, não deveria ser entendido como um dia de expiação de pecados, mas sim como um dia de afirmação de alguns de nossos mais violentos “pecados”: nosso domínio absolutista sobre a natureza e a escravização e o genocídio de animais. Trata-se de um dia de celebração de nossas fantasias primitivas, que mantêm justificativas pretensiosamente válidas para todo tipo de violência e insanidade. O Yom Kipur celebra nossa pequenez moral.

A maioria dos judeus (e dos cristãos) talvez nem tenha lido tais passagens “lado B" da Bíblia (ainda que elas dominem quase todo o texto, especialmente no pentateuco inicial, a Torá hebraica) mas essas pessoas seguem dando suporte para essa tradição.

(Vale comentar que o judaísmo só não faz mais sacrifícios de animais porque o templo de Jerusalém foi destruído no ano 70 EC, mas faz parte de sua esperança que tal templo seja reconstruído com a vinda de seu esperado messias e os holocaustos sejam reintroduzidos).

É inacreditável que, em um mundo no qual tantas discussões éticas já se acumularam e tantas mudanças culturais já ocorreram, siga-se louvando a Bíblia como nossa maior referência moral.

Se queremos um verdadeiro dia de arrependimento, ao menos em relação ao que fazemos animais, o mínimo seria transformar o Yom Kipur em um dia para se tornar vegano.

Até que a humanidade deixe de escravizar e torturar todas as demais espécies do planeta, ela não merece, nem deve almejar, perdão.

 

Dennis Zagha Bluwol, 27/28 de setembro de  2020

 


[1] Leia a conquista de Canaã pelos hebreus no livro de Josué ou a destruição dos amalequitas no livro de Samuel, 15: 1-3:  “Disse Samuel a Saul: Enviou-me o Senhor a ungir-te rei sobre o seu povo, sobre Israel; ouve, pois, agora as palavras do Senhor. Assim diz o Senhor dos exércitos: Castigarei a Amaleque por aquilo que fez a Israel quando se lhe opôs no caminho, ao subir ele do Egito.  Vai, pois, agora e fere a Amaleque, e o destrói totalmente com tudo o que tiver; não o poupes, porém matarás homens e mulheres, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos.

 [2] Um exemplo do Velho Testamento: “Aquele que fere seu escravo ou escrava com uma vara, e eles morrem sob suas mãos, será culpado do crime. Mas se a parte permanecer viva por um dia ou dois, ele não estará sujeito à punição, porque é seu dinheiro”. (Êxodo 21: 20–21). Um do Novo Testamento: "Escravos, sujeitem-se a seus senhores com todo o respeito, não apenas aos bons e amáveis, mas também aos maus" (Pedro 2:18).

 [3] Apenas alguns exemplos:

 Sobre a noite de núpcias: "Mas, se a acusação for verdadeira, tendo-se verificado não ser virgem a jovem, ela será levada até a entrada da casa do pai e os homens da cidade a apedrejarão até à morte, por haver cometido uma infâmia em Israel, prostituindo-se na casa paterna. Assim eliminarás o mal de teu meio” (Deuteronômio 22: 20–21);

 Sobre ser estuprada: "Se, em uma cidade, um homem se encontrar com uma jovem prometida em casamento e se deitar com ela, levem os dois à porta daquela cidade e apedrejem-nos até a morte: a moça porque estava na cidade e não gritou por socorro, e o homem porque desonrou a mulher de outro homem. Eliminem o mal do meio de vocês". (Deuteronômio 22: 23–24).

 As mulheres estejam caladas nas igrejas, porque lhes não é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa, interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é indecente que as mulheres falem na igreja” (1 Coríntios 14:34-35).

 As mulheres sejam submissas ao seu próprio marido, como ao Senhor; porque o marido é o cabeça da mulher, como também Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo. Como, porém, a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido.” (Efésios 5:22-24).

 [4] "E indignou-se Moisés contra os oficiais do exército, chefes dos milhares e chefes das centenas, que vinham do serviço da guerra, e lhes disse: Deixastes viver todas as mulheres? Eis que estas foram as que, por conselho de Balaão, fizeram que os filhos de Israel pecassem contra o Senhor no caso de Peor, pelo que houve a praga entre a congregação do Senhor. Agora, pois, matai todos os meninos entre as crianças, e todas as mulheres que conheceram homem, deitando-se com ele. Mas todas as meninas, que não conheceram homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós". (Números 31: 14-18)

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