Veganismo e Ambientalismo: aproximações, conflitos e a necessidade de um ecoveganismo
Uma das maneiras de se justificar socialmente a emergência ética do veganismo é expondo os impactos ambientais calamitosos da dieta centrada no consumo de animais. Assim sendo, por vezes a opinião pública associa o veganismo como uma forma de ambientalismo, o que não é fato. O presente ensaio pretende traçar algumas fronteiras entre essas duas abordagens e propor a necessidade de um ecoveganismo.
1 - Veganismo não é ambientalismo
O fato que
embasa o veganismo e as teorias sobre direitos dos animais é o de que os
animais são seres sencientes – são capazes de sofrer - e, portanto, são
merecedores de respeito como indivíduos.
O veganismo
é, assim, de natureza muito diversa da do ambientalismo, cuja forma dominante é
de bases coletivistas, o que
significa que ele concentra suas preocupações nas espécies e ecossistemas,
importando, principalmente, as relações entre seres, o número de indivíduos em
uma certa região ou a sobrevivência da espécie.
No olhar
ambientalista, permite-se a exploração controlada dos animais, vistos apenas
como partes de uma entidade abstrata chamada de “natureza". Se a espécie
não está em extinção ou se não se está em certo momento da vida de membros da
espécie, como no período de reprodução, não há problema em matar, com limites
numéricos, seus membros.
Se não
pensamos desse modo em relação aos humanos, por que deveríamos pensar em
relação aos outros animais, sendo eles também sencientes? Para o veganismo, a
questão não é se ainda há espécimes vivos de uma espécie ou se o número de
seres mortos em um ano está dentro dos parâmetros legais para a manutenção da
existência da espécie. Importa o respeito a cada animal, especialmente
considerando o direito de cada indivíduo de não ser escravizado, torturado ou
assassinado.
Há, portanto,
um salto qualitativo dado pelo veganismo, ou pelas teorias sobre direitos dos
animais, em relação ao ambientalismo: a passagem de uma visão de mundo
coletivista (onde os entes concretos se apagam em uma massa de entes abstratos)
para uma visão de mundo que se atenta aos entes concretos – indivíduos.
O coletivismo, apesar de parecer algo belo, é, comumente, uma visão de mundo homogeneizante e que possibilita diversos tipos de violência. Ditaduras, de direita ou de esquerda, são coletivistas, já que embotam a existência de entes concretos em nome do funcionamento global da sociedade, controlada como uma massa única por uma elite no poder. Um ambientalista que outorga a si mesmo o direito de falar quais animais podem ser mortos e quais não podem age de forma autoritária, como se tivesse direito de exercer tamanho poder sobre o destino dos demais seres vivos do planeta. Esse modelo de ambientalismo, assim, reproduz a visão de mundo geradora dos problemas ambientais: aquela que põe o ser humano no centro e no controle do mundo.
2 - Limites do individualismo vegano
A postura
vegana de atenção aos indivíduos também possui, contudo, um problema, quando
tal atenção se restringe apenas aos
indivíduos. Tal problema se manifesta especialmente quando o vegano se atenta
aos animais mas se esquece que eles vivem em ecossistemas.
Todos os
indivíduos da natureza dependem, para a própria sobrevivência, das inúmeras
relações ecossistêmicas nas quais estão inseridos. A vida é um infinito
conjunto de relações que devem ser respeitadas tanto quanto o direito de cada
ser de viver em liberdade de acordo com seus próprios interesses (mesmo que
sejam interesses comuns de toda sua espécie).
Em realidade,
o “todo”, a “natureza”, não é algo que exista em si, como um ser autônomo.
Natureza é o resultado da união entre os entes individuais e uma imensidão de
processos e relações. “Natureza” é uma abstração humana. Assim sendo, discursos
do tipo “salvem a natureza” normalmente caem no vazio.
É, portanto,
igualmente fundamental respeitar os ecossistemas (coletivo) e os animais
(indivíduos), e a oposição entre as duas escalas é por si mesma problemática,
pois, no mundo concreto, são inseparáveis, Assim, não há respeito aos
indivíduos sem respeito ao que é coletivo, assim como não há respeito ao
coletivo (ambientes, sociedades…) sem respeito aos indivíduos que lá vivem.
O próprio
termo “indivíduo” também pode gerar compreensões equivocadas. O “indivíduo” é,
na verdade, algo que só existe em relação, algo formado por incontáveis
processos fluidos. Nunca é algo uno, isolado. É importante que durante a
leitura deste texto se atribua esse valor para o termo.
Assim sendo, não há como pensar em um veganismo que seja plenamente individualista ou plenamente coletivista (o mesmo deveria valer para a política). É preciso, portanto, uma ética (e uma política) cujos fundamentos sejam a interdependência e a coexistência, ou seja, uma ética (e uma política) que saia dos pólos do individualismo e do coletivismo - que não coloque nem indivíduos “no centro do mundo” (de modo que passem por cima dos interesses coletivos ou de outros indivíduos para atingirem as próprias finalidades), nem que coloque o coletivo “no centro do mundo” (o que faz com que se possa passar por cima dos interesses das existências individuais para garantir a existência coletiva).
3 - A necessidade de um ecoveganismo
Como
resultado das reflexões expostas acima, propõe-se aqui a defesa de um ecoveganismo: “veganismo” no que se
refere ao respeito a cada animal em seus interesses específicos, como não
passível de ser nossa propriedade, como merecedor da liberdade individual
própria de membros de sua espécie; “eco” no sentido de que essa preocupação é
inseparável da preocupação com aquilo que é coletivo por princípio, ou seja,
aquilo que embasa e possibilita a vida – e a qualidade da vida – de todos esses
seres: o imenso conjunto de relações entre tudo o que há - seres vivos,
minerais, gases, águas, dinâmicas de relevo, hídricas, atmosféricas, tectônicas
etc. - ao qual chamamos, em nossos conceitos abstratos, de natureza.
Como exemplo,
tomemos a alteração de nossos padrões alimentares, parte fundamental das
propostas de cunho ético do veganismo. Pensando de modo ecovegano, ela deveria
ir além da retirada de ingredientes de origem animal dos pratos. Um veganismo de
bases ecológicas deve pensar também naquilo que é prejudicial e destrutivo aos
ecossistemas e a toda vida que há neles.
Toda forma de
violência aos ecossistemas deve ser considerada tanto quanto todas as formas de
violência direta aos animais. Expandir a prática vegana já consolidada passa
por não atrelá-la ao consumo exacerbado de produtos responsáveis por graves
impactos ambientais. Um produto pode ser feito apenas de ingredientes vegetais
e sintéticos, não sendo responsável pela morte de um animal específico, porém
pode ser responsável por grandes impactos ecossistêmicos em oceanos, florestas,
rios, atmosfera etc. E, assim, claro, gerar sofrimento e morte a um número
incontável de animais.
Ou seja,
assim como devemos nos opor à propriedade humana sobre os animais (veganismo ou
abolição da escravidão animal), também cabe criticar ações que tratam o planeta
como propriedade exclusiva dos humanos, causando sofrimento aos animais
silvestres (comumente esquecidos pelos veganos, mas que são tão sencientes quanto
os domesticados), tortura, morte, necessidade de fuga, destruição de seus
locais de residência, de busca por comida, companhia e reprodução. O
ecoveganismo, portanto, não é algo além do veganismo, mas uma tentativa de
considerar o veganismo (e a posição abolicionista) de forma ainda mais séria,
já que se trata, em essência, de evitar ao máximo a propriedade sobre outros
seres e a geração de sofrimento e morte a seres sencientes.
Dessa forma,
a escolha de nossos alimentos com base em preocupações de teor ético vai além
do fato deste alimento conter ou não ingredientes de origem animal. É
importante que o veganismo se preocupe com a existência de formas
ecologicamente mais respeitosas de produzir e consumir alimentos, vestimentas,
medicamentos, ferramentas etc.
É preciso que
os veganos repensem suas fontes de produtos vegetais, geralmente estruturadas
em grandes monoculturas com alto uso de agrotóxicos e presença massiva de
maquinários de colheita e processamento que aniquilam um número incontável de
pequenos animais e fazem com que um prato vegano não seja, automaticamente, “cruelty free”.
É preciso
também repensar que tipo de “produtos veganos” queremos, para que não sejam
apenas mais uma coleção de produtos industrializados produzidos sem
preocupações com os ecossistemas, cheios de embalagens e substâncias nocivas
aos ambientes, e, portanto, aos animais silvestres.
Práticas que destroem ecossistemas e espécies nativas mundo
afora devem estar no centro das preocupações dos veganos, e não na periferia ou
inexistentes. Não há como justificar que o alimento que mantém a vida de uns
destrua a vida e a qualidade da vida de muitos.
O veganismo é, antes de tudo, um
compromisso ético, e não apenas a busca por novos sabores. Assim sendo, não
podemos perder de vista que ele exige o constante
exercício da busca por menor impacto sobre entes sencientes – capazes de
sofrer.
Precisamos
então de um padrão alimentar (e de consumo, de forma geral) que respeite, no
limite máximo das possibilidades em um mundo sempre imperfeito, todas as formas
de vida. A mentalidade do veganismo precisa, portanto, expandir-se e se
aprofundar. Os radicais sentidos e transformações apontados pela ética
abolicionista vegana, se bem entendidos, significariam alterações morais e
comportamentais de enorme valor (atenção ao sofrimento de todos os seres
sencientes – compaixão – e uma ética voltada para o cuidado com todos os seres
que sofrem ou necessitam de ajuda, por exemplo).
Caso
contrário, caso o veganismo não seja colocado no rumo de suas mais profundas
possibilidades morais, ele tende a se estagnar, sendo útil às espécies
domesticadas e escravizadas pela humanidade, mas sem grande repercussão aos
animais silvestres, cuja quantidade de indivíduos é ainda muito maior.
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