Sobre os traficantes da espiritualidade

 

Vendem Deus como se vende a uma droga: algo externo que, ao ser engolido, leva ao êxtase e ao fim dos problemas.

(Seriam certos membros das instituições religiosas vendedores de "ácido litúrgico"?)

Isto é uma péssima leitura da espiritualidade humana, que embasa um tipo de mundo igualmente nefasto.

O tipo de droga vendida vai mudando para se adequar ao status quo de cada época. Já que, atualmente, o status quo é o da esperança de salvação imediata no consumo de produtos e ideias e no comportamento-espetáculo, é assim que as igrejas se portam.

Mas, em essência, para além da variedade da droga de cada época, o controle é a matéria-prima central desde sua origem: repressão, hierarquias, manutenção de injustiças, naturalização do sofrimento, violências mentais e corporais, guerras…

Não há, nelas, apologia real da não-violência. Não há a pretensão de fundar, de fato, concretamente e materialmente, uma sociedade de pessoas boas, amáveis, com justiça e felicidade. Essas coisas não aparecem por milagre nem por mudanças externas impostas. Vêm da transformação real da interioridade dos seres e, logo, da realização concreta da vida em coletividade.

É preciso que se seja o caminho, e viver esse caminho, a verdade e a vida. Meditar não apenas se ausentando do eu, como fazem os budistas, mas também adentrando fundo no(s) eu(s). Devemos estar atentos e à procura daquilo que é verdadeiro em nós, mesmo que tanto o “verdadeiro”, quanto o próprio “eu” que busca sejam transitórios, mutantes.

É necessário uma espécie de visão de mundo e moralidade que não parta da fuga da concretude, mas do mergulho no concreto, no corporal. Sem a pressão das religiões, isto seria conscientização e libertação. Mas essa dimensão humana foi falsificada como naturalmente herética, socialmente corrompida e moralmente repugnante.

É conhecendo profundamente a corporalidade do mundo, suas dores e prazeres, que podemos almejar nos iluminar.

As religiões são antropocêntricas e egocêntricas. A experiência da unidade e da totalidade do mundo, não.

Quando se chega ao contato com algo que se possa chamar de transcendente/divino/iluminação/sagrado... através de substâncias que te ofuscam a consciência (drogas, como o ácido litúrgico), se chega a deuses externos, vendedores de salvação e compradores de lotes de almas. Quando se chega através de um percorrer consciente e reflexivo, é possível que se alcance um “modo de ser” capaz de nos levar, a todos, a uma vida e a um mundo mais decentes, amáveis, justos e luminosos.

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