Compêndio da cosmovisão Picarética
Compêndio da cosmovisão Picarética
Metafísica (Princípios da visão de mundo)
A natureza última do universo é o absurdo. A natureza última não é nem uma essência nem um princípio, pois não é anterior nem posterior às coisas. O sentimento mais próximo da louvação é o espanto.
As coisas “simplesmente” são. Este “simplesmente” não denota uma simplicidade, mas “apenas” que as coisas “apenas” são. Este “apenas” não quer dizer que isto é pouca coisa, mas apenas que as coisas são. E pronto. E coisas inter-relacionadas transformam-se e criam umas às outras, que devem suas existências às anteriores, mas são, ainda assim, sem planejamento prévio.
As únicas coisas que possuem porquês são as criadas por seres conscientes. A complexidade destes porquês depende da complexidade da(s) consciência(s) que as criaram. E isto é muito variável, seja por espécie, seja por indivíduos da mesma espécie. O universo, portanto, apenas seria fruto de porquês se criado por seres conscientes anteriores ao Universo.
Epistemologia:
a) Ironia
A ironia é uma nobre forma de compreensão do “real”. Não é apenas uma figura de linguagem, mas um ponto de partida epistemológico/metodológico.
Tal compreensão parte da noção metafísica da Picarética para comentar o percebido e as ideias sobre o percebido sem entrar em contradição com o absurdo e sem pretender uma verdade final a ser definida.
b) Razão
A razão é o melhor instrumento para levar a razão ao seu limite, dobrá-la sobre si mesma e transformar seus construtos em vazio ou ironia.
Física (conceito de “natureza”)
A natureza é o absurdo resultante da interdependência entre os processos de mutação do absurdo.
Natureza humana
Só se pode falar em “natureza humana” entendendo-se a natureza da forma acima apresentada. É preciso, portanto, fugir dos vícios linguísticos, à la Hobbes ou Rousseau, em que há algo fundante - natural - do ser humano, seja algo de bom ou de ruim.
Educação
Dada tal física, o ato de expandir o conhecimento da natureza, inclusive da humanidade, é de extremo respeito na Picarética, daí a viagem ser um método educativo vital. A viagem é um dos meios mais profundos de evolução espiritual. Trata-se de ampliações de consciência com o poder de desatar vícios de percepção e pensamento: desfazer sistemas de crença, abrir túneis de realidade. Em linguajar picarético, é uma abertura para a vivência profunda do absurdo.
Ética
Este é um campo em que os poucos picaréticos que resolveram dar importância nunca conseguiram sistematizar nada coletivo. Há, porém, uma tendência constante, que se tivesse que ser nomeada nos velhos sistemas de crença, talvez fosse reconhecida como um egoísmo-coletivista. Traições das traduções.
Geografia
Sendo a natureza resultante da interdependência entre os processos de mutação do absurdo, a Geografia é a manifestação material - paisagística - das dinâmicas absúrdicas. A interdependência das dinâmicas territoriais do absurdo forma a geografia do mundo.
História
A história é sempre um conjunto de codificações. Estas são baseadas na captação de ínfimas porções dos dados sensórios dos instantes vividos organizadas de acordo com os sistemas de crenças programados.
Os registros poderiam ter sido criados assim ou não.
A humanidade e sua compreensão do mundo formam um grande conjunto de novelas: um épico.
Se existiu ou não Jesus, se era ou não nazareno, é indiferente para quem vive sua vida baseada em princípios e ideais cristãos. Podemos introjetar em nossas vidas ideias atribuídas a Jesus, a Dostoievsky ou ao padeiro da esquina.
Somos novelas construindo seus próximos capítulos, seja sem nós, conosco, com nossa lembrança, com a lembrança do esquecimento ou com o total esquecimento (mas com fagulhas feitas de partículas que outrora foram nossos cérebros, unhas ou sacos escrotais… tudo existe e conforma as tramas da existência).
Literatura
a) Senso irônico
Na literatura, a epistemologia picarética gerou a chamada “Redução Picarética”, modo de escrever que limita o texto à constituição das ironias, geralmente em frases curtas. O sentido do texto, o chamado "senso irônico", é gerado pelo contato entre as frases e pelo ritmo.
b) Poesia e prosa
A poesia não está na forma ou na métrica, mas no espírito de criação, na percepção da pluralidade infinita de possibilidades advindas da conexão mente-objetos, no reconhecimento da realidade para além das palavras, usando-as de modo a expandir e impedir seus limites.
O poético é, pois, mais honesto que o prosaico.
A Picarética é uma abertura para o poético dada sua entrega ao absurdo.
Muitos picaréticos costumam dedicar-se à redação de poesias. Uma forma de poesia muito praticada apresenta poucos versos que visam comentar um insight, levantar uma questão, atentar para um instante (influência dos haicais japoneses) ou construir duas ideias que, igualmente aceitáveis, se contrapõem.
Veja abaixo alguns exemplos atribuídos à V.P. Zaghananda, poeta e místico:
Para o galho que sobe com o tronco,
Há importância a altura das aves?
*
Galho sem tronco é tronco?
Tronco com folhas é galho?
*
Indignado tolo
Indagou empedernido:
Mas não faz sentido!
Religiosidade
Não há uma religiosidade picarética. Porém, a aposta da metafísica Picarética é viver a dúvida.
Aarum Vaischnam, teólogo, sobre a ideia de Deus, redigiu em seu livro {On [of(f)] Picharetics} a seguinte resposta a um leitor:
“Sim, nós criamos os deuses... E por que isto faz com que não existam?”
Há uma escola de pensamento e prática que pretende viver, expandir e checar os limites da metafísica picarética. A escola não possui um nome, já que, por saber do desconhecimento de causas últimas e objetivos finais, não há uma verdade a defender, mas seus seguidores mais radicais chamam-se de monges picaréticos, talvez uma associação nada esperada pelos fundadores da Picarética, mas não menos importante para o aumento deste túnel de realidade, o vivendo nos limites. Estes monges herdaram de práticas zen-budistas trazidas pelo primeiro picarético assumido no Japão, Chiharu Hisako , cujo nome parece querer dizer mil nascentes de muita vida, as nobres ideias de interdependência e não-substancialidade e a prática da meditação (um elemento característico dos picaréticos que se consideram monges, ainda que não limitado a estes).
Interdependência e não-substancialidade (annica e annata) são elementos fundantes da percepção picarética desde suas origens, ainda que os escritos de Mark Zagha não tratem destes fenômenos desta maneira. Sabe-se que no final da vida, Mark estudava budismo com grande vontade, repetindo muitas vezes para suas companhias o bordão “eu não inventei nada, mesmo... posso morrer feliz”, frase muitas vezes mal compreendida pelos facilmente convencíveis niilistas revolucionários.
A meditação, elemento aderido como de essencial importância pelos monges picaréticos, seria, para eles, uma forma de treinar-se para viver annica e annata de modo mais íntegro e aprofundar esta vivência, romper sistemas de crença, aceitar o vazio, o mutante, o não-ser do ser - um possível treino do espírito para o embarque, sem bloqueios, no absurdo constituinte do Ser.
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