A absurda cartografia do "eu" (2013)


O presente ensaio foi revisto e ampliado em 2023, e incorporado no artigo "Ensino de Geografia no Contexto das “Ciências da Natureza”: em busca de uma Educação Cosmológica Eticocêntrica", publicado no livro "Revisitando a teoria e prática a partir da formação de professores: programas PIBID e PRP"


A absurda cartografia do "eu"

O que concebemos por “eu” molda o modo como delineamos o que é o mundo e o que somos nós em tal mundo.
Pode-se destacar algumas características marcantes do “eu" em nossa sociedade. Tente cartografá-las!
(a) O “eu” como centro do mundo: o mundo sou eu. Trata-se do comum comportamento no qual o egocentrismo alcança proporções absurdas, isto é, a visão de mundo que coloca o sujeito como centro do universo e o mundo como estando em sua função. Essa visão reflete a falta de capacidade de se passar do egoísmo infantil para visões mais adultas de mundo, nas quais o ente não se vê no centro do cosmos, e a falta de habilidade de ver o mundo sem centros, como pura interdependência.
Além de uma questão moral, trata-se também de uma questão geográfica, já que ela ajuda a conformar a espacialidade do mundo, configurando, por exemplo, nossas noções de centro e periferia e de eu e de outro. Assim como a cartografia pode ser eurocêntrica, nossa cartografia pessoal pode ser egocêntrica.
Em sentido geográfico, ainda que não geométrico, essa percepção deformada pode gerar um fenômeno em que:
(b) Os “eus” são maiores do que o mundo. Ou seja, como o corpo/vida de um indivíduo representa para ele tudo o que importa no mundo e os objetos externos a ele só importam à medida que o servem, o mundo exterior ao sujeito passa a ser apenas contingência a serviço do ente. O “mundo” torna-se menor e menos importante do que os indivíduos. Se se fosse representar tal fenômeno com algum tipo de cartograma, as pessoas deveriam ser maiores do que o mundo em que vivem.
Isso exige também uma reflexão sobre escala: quais escalas possuem os diversos elementos que formam os mundos vividos por cada sujeito? Quais escalas damos a nós mesmos e ao mundo na formatação mental do que entendemos por mundo?
Podemos expressar as duas características acima como:
(c) O profundo isolamento dos entes; como processos de ensimesmamento: cada ente vivendo por si, cada ente sendo um mundo. Novamente, cabe pensar nisso como uma distorção geográfica presente no mundo vivido de cada sujeito, em que a percepção dos demais é profundamente embotada. Cabe aí o questionamento cosmológico e cartográfico: que mundo e que mapa são possíveis quando apenas um fenômeno é todo o mundo, não sendo, portanto, tal mundo formado por uma série de fenômenos que localizam-se uns em relação aos outros?
Há cartografia sem relações entre lugares? Um ente isolado é localizável?
É possível falar-se em um “lugar” com um ente isolado, não pertencente a uma rede de relações? Ou trata-se de um objeto não passível de ser georreferenciado? Como discutir sobre fronteiras se o sujeito é todo o mundo?
Necessariamente, portanto, a discussão sobre o “eu” leva à discussão sobre a alteridade, pois “o que sou eu e o que é o outro”? Quais meus limites? Dependendo da noção de “eu” praticada, certas noções sobre a alteridade terão lugar. Trata-se, portanto, de uma questão ética fundamental.
A tradicional discussão geográfica sobre fronteiras pode alimentar-se desses questionamentos, além de alimentá-los.
Logicamente, a discussão sobre a alteridade nos leva à noção de totalidade, de conjunto de interdependências ou, se quisermos, à ideia de natureza. Se nossas cosmovisões não nos levam a nos ver como partes de redes maiores do que nossos interesses individuais (espacialidade do ente fechado em si mesmo), que tipo de espaço-temporalidade coletiva é gerada? Como ficam, por exemplo, as relações espaciais entre humanos e natureza? É clara a importância dessas questões para lidar com nossas crises ecológicas, políticas e morais.

Dennis Zagha Bluwol, 2013

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