Ecoveganismo, modelo civilizacional e educação cosmológica

 

Ecoveganismo, modelo civilizacional e educação cosmológica

 


Como lidar com uma sociedade baseada na coisificação dos entes, com a normalidade da incapacidade das pessoas identificarem-se com tudo aquilo que está fora de seus próprios corpos ou daquilo que lhes dá prazer, assim como com a incapacidade de perceberem a si mesmos, aos demais entes e ao mundo em que se vivem com interesse e respeito?

O modo opressor, possessivo e violento com que tratamos os animais e toda a natureza é fruto de modos de perceber, significar e vivenciar o mundo que estruturam nossa mente há milênios. Fruto de cosmologias questionáveis. Sendo assim, as críticas comumente feitas por defensores de relações eticamente aceitáveis com os animais apontam para algo que é consequência de visões de mundo profundamente arraigadas na humanidade.

Quando pensamos na maneira como o mundo, as sociedades ou as pessoas se organizam, em suas espacialidades, temporalidades e paisagens, estamos atentando para a maneira como tais pessoas vivem “o mundo” a partir do modo como o percebem e o enchem de significados, transformando mentalmente a miríade incontável de fenômenos e processos percebidos em algo com certa ordenação passível de ser vivida: um mundo. E, aí, seus lugares neste mundo.

A maneira como percebemos o mundo e o significamos pode ser entendida como um eixo em torno do qual aquilo que chamamos de mundo se molda. Dito de outra forma, dependendo do modo como nossa mente está estruturada para perceber o mundo, certa noção do que é o mundo é gerada. Pode-se falar, então, que há aí um caráter cosmológico ou axiológico: cosmologias (modos de perceber e ordenar o mundo), ao moldarem o modo como entendemos o que é o mundo e nosso lugar nele, de certa forma criam nossos mundos e, assim, delineiam nossas possibilidades de olhá-los, percebê-los, sistematizá-los e vivê-los, modificando assim o mundo concretamente existente.

Isto faz com que seja de imensa importância, se quisermos compreender aspectos da ação humana no mundo, que atentemos para as mentes humanas, seus padrões de percepção e julgamento, suas maneiras de se vincular aos diversos fenômenos, os conceitos que estruturam categorias básicas da vivência humana, tais como espaço, tempo, eu, outro, natureza etc. Este aprofundamento na sensibilidade e na psique humana, em suas formas de operação, sentimentos e desejos, é fundamental para investigar-se com profundidade a concretude das existências individuais e sociais.

Torna-se, portanto, impossível separar nossas dimensões mentais e o mundo concreto em que vivemos. Não há um mundo concreto para nós sem o filtro da mente. Não há mente humana que não seja atrelada a todos os diversos fenômenos externos aos quais possui alguma forma de contato direto ou indireto. Em suma, mente e mundo não são entidades independentes.

A maneira como percebemos e significamos os animais, por exemplo, faz parte de um conjunto de princípios cosmológicos que fundamentam nossa existência na Terra. A ideia de que seres de outras espécies estão no mundo para nos servir é apenas uma forma possível de organizar a ordem dos fenômenos percebidos na realidade.

É compreensível que vejamos os animais como alimento, considerando o histórico humano no planeta e os milhões de anos que perambulamos atrás de sobrevivência básica. Nosso modelo de civilização, por exemplo, é derivado deste esforço de milhões de anos para tentarmos sobreviver em meio às dificuldades da natureza. O marco simbólico deste modelo civilizacional pode ser apontado como a Revolução Agrícola, ocorrida no período Neolítico, há algo como dez mil anos atrás, quando iniciamos a passagem do nomadismo para o sedentarismo, com o início da agricultura e da criação de animais. Após milhões de anos dependendo do esforço e da sorte como caçadores-coletores, passamos a impor nossas necessidades para a natureza. Ao invés de fazer parte da natureza como qualquer outro ser, colhendo aquilo que está disponível, a partir deste momento a humanidade começou a ditar quais espécies existiriam e em quais lugares cada uma delas deveria estar (e quais não deveriam existir, podendo ser mortas, extintas ou consideradas como invasoras ou ervas-daninha). Este foi o início da ideia de propriedade sobre a terra. A natureza deixou de ser “ela mesma” e passou a ser posse de pessoas. Assim, tais pessoas começaram a julgar que poderiam fazer o que quisessem com “ela”, modificá-la segundo seus próprios interesses.

Em suma, podemos traduzir a Revolução Agrícola como a transformação das paisagens do mundo possuindo como objetivo dar voz às vontades humanas de permanência, controle e poder, assim como dar resposta a um sentimento muito presente nas mentes humanas: o medo – medo do amanhã, de não haver comida, de chover, de passar frio.

Vê-se assim que certas características mentais – cosmológicas - geram certa modelagem do mundo, certos modelos de sociedade, certos modos de se relacionar com os animais e com toda a natureza, certas paisagens, certas espacialidades, certas temporalidades, certos lugares. Pensar no modo como a humanidade relaciona-se com os demais animais é pensar nos fundamentos cosmológicos que geraram este tipo de mundo: quais necessidades, vontades e crenças o embasaram.

Este modelo civilizacional de posse e subjugação da natureza é compreensível, talvez o mais natural, como forma de resposta humana à dificuldade de viver-se nos ambientes naturais. Contudo, a evolução moral da humanidade nem sempre se dá em consonância com a lógica natural de sobrevivência.

Do ponto de vista ecológico e dos animais, representamos uma cosmologia em crise. Nossos pressupostos cosmológicos são antagônicos aos fundamentos ecológicos da vida. Procuramos permanência e controle em um mundo impermanente, procuramos plena independência em um mundo interdependente, procuramos isolamento e egoísmo em um mundo múltiplo e diverso.

Somos, assim, uma cultura de guerra à natureza e, portanto, de guerra aos animais, e, como é tradicional em guerras, os inimigos inúteis tendem a ser exterminados e os inimigos úteis tendem a ser escravizados. Não é assim que nossa civilização trata os entes sencientes não humanos do planeta?

É preciso, então, como fundamento de uma educação ecovegana, um trabalho pautado no desenvolvimento de características cosmológicas desejáveis, que formem pessoas hábeis em viver em um mundo de interdependência, coexistência, impermanência e multiplicidade (diversidade).          Trata-se da necessidade de finalmente aprendermos a habitar e coabitar o mundo, compartilhando lugares que “nos envolvem, forçosamente, nas vidas de outros seres humanos e, em nossas relações com não-humanos, indagam como responderemos ao nosso encontro temporário com essas rochas, pedras e árvores particulares. Eles exigem que, de uma forma ou de outra, confrontemos o desafio da negociação da multiplicidade[1].” Incluam aí, entre os não-humanos, os animais.

Essa educação deve incluir alterações no modo como as ideias de “eu”, “outro” e “todo/natureza” são arquitetadas em nós. Ideias menos egoístas de “eu” devem ser criadas, vínculos mais profundos entre “eu” e “outro” devem ser desenvolvidos, a percepção do todo como um conjunto incrivelmente imenso e múltiplo de redes de conexões, de processos, deve ser estimulada. Esta educação deve também desenvolver a habilidade de viver em um mundo mais processual e relacional do que cheio de coisas e objetos definidos; deve também fornecer conhecimento e desenvolver habilidades para que as pessoas se percebam não como o centro do mundo (e sua espécie não como o centro do universo), que não sintam todo o mundo como em função de suas próprias necessidades; deve permitir uma nova política (pois, o que é a política senão a questão do coexistência?) de fundamentos ecológicos, em substituição às politicagens desenvolvimentistas e antropocêntricas (ainda que repetidoras de argumentos ambientalistas) em vigor.

É possível definir essa proposta como uma “educação cosmológica”, haja vista que almeja a alteração de maneiras de perceber, significar e vivenciar o mundo: almeja mentes capazes de gerar um novo cosmos, uma nova ordem, mais justa e compassiva.

Dennis Zagha Bluwol, 2019

 


[1]MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008, pp.204.

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