Ciência e Ética: reflexões sobre o legado de Charles Darwin (2009/2019)



Preâmbulo
          As partes 1 e 2 deste texto oriundas de uma revisão de um artigo escrito em 2009 e publicado originalmente na ANDA com o título "Darwinismo e veganismo: princípios para uma ética ecossistêmica". A parte 3 foi redigida em 2019.

Introdução
Parece-me inegável que o egoísmo, o hedonismo e o individualismo de nossa moralidade padrão representam afrontas à manutenção da vida e da qualidade da vida na Terra. Viver o mundo como se fôssemos entes isolados cujos interesses se resumiriam à busca de satisfação pessoal é, além de um ponto de partida ignorante, uma prática suicida e assassina.
Apesar de características estruturantes da “natureza”, tais como a impermanência e a interdependência, serem facilmente observáveis, internalizá-las de modo a estruturarem nossos hábitos, nossos padrões de funcionamento mental, nossos túneis de realidade, incluindo aí nossa moralidade, gerando um distanciamento do egoísmo pautado unicamente pela autossobrevivência, parece não ser assim tão fácil, principalmente em um modelo de civilização arrogante como o nosso, cuja crença central é a de que toda a natureza é subserviente aos propósitos humanos e que podemos reorganizá-la e alterá-la ao nosso bel prazer, inclusive selecionando as espécies que “merecem” permanecer vivas.
Neste ensaio, analisa-se a forma como as contribuições da obra de Charles Darwin nos ajudam a nos reposicionar no mundo, possibilitando novos e mais profundos sensos de moralidade.

1 – O que é a evolução darwiniana?
Darwin acoplou à antiga percepção da vida como eterna transformação a ideia de seleção natural[1]. Isto significa que indivíduos e gerações de seres vivos tenderão a contribuir mais ou menos para as mutações que ocorrerão em suas espécies dependendo do quanto estiverem adaptados aos meios em que vivem.
Com os avanços da Genética posteriores a Darwin, compreendeu-se melhor este processo: cada novo ser nascido recebe informações genéticas de seus “progenitores” (pais e mães em animais sexuados, mas também por outros meios, incluindo os meios vegetais) e neste percurso podem ocorrer mutações nos genes, gerando características que não existiam antes. Estas mutações podem significar algo bom ou algo ruim para o novo ser. Isto é, podem ajudar ou atrapalhar a adaptação deste ser às condições ambientais e modos de vida possíveis em seu tempo e lugar. Se uma mutação trouxer benefícios, provavelmente o ser vivo será bem sucedido em sua sobrevivência e reproduzirá mais que os outros.
À medida que mais gerações de seres forem nascendo com esta nova característica, permitindo maior adaptabilidade ao ambiente e maior facilidade de sobrevivência, possibilitando maior tempo de vida e de número de reproduções do que os que não a possuem, tal característica tenderá a ser o padrão em tal espécie. Muitas mutações ao longo do tempo acabam criando uma nova espécie (quando os membros desta não conseguirem mais se reproduzir com os membros da espécie antiga).
Novas espécies também são impulsionadas por mudanças geográficas, já que em cada lugar, dadas as especificidades ambientais, características diferentes são benéficas e seres diferentes acabam se dando melhor, ou seja, outras mutações genéticas são úteis e novas espécies acabam surgindo.

2 – Não somos o centro do Universo
Compreender a evolução da vida na Terra a partir das lentes darwinianas permite percebermos que nós, humanos (Homo sapiens sapiens), somos apenas mais uma das espécies que vêm surgindo e se transformando desde mais ou menos 3,7 bilhões de anos atrás, quando as primeiras bactérias parecem ter surgido. Compartilhamos ancestrais comuns com as demais espécies e com elas possuímos proximidade genética. O trabalho de Darwin e seus sucessores ganha, assim, enorme relevo, inclusive moral.
Entender o processo de surgimento, transformação e extinção de espécies é extremamente importante para que nos localizemos neste mundo. Trata-se de bilhões de anos de surgimento e desaparecimento de espécies devido às incontáveis relações entre as espécies e entre as espécies e os ambientes.
Entender que a vida é algo que se recria a cada momento de forma interdependente, em um processo no qual todas as espécies são partes igualmente importantes, nos leva a alterar valores[2]: o ser humano não é o centro do universo. Não somos a espécie mais importante da Terra. As outras espécies não foram criadas para nosso uso. Convivemos no mesmo momento da história da vida que todos os outros seres vivos atualmente existentes.
Somos todos partes de uma rede inacreditavelmente imensa de seres vivos que cumprem seus papéis nesse estupendo conjunto de relações que é a vida. Nenhum ser é independente ou mais importante que outro. Esta compreensão deveria fazer desabar o edifício antropocêntrico e especista de nossas ciências e moralidades, mas parcela considerável da humanidade continua crendo que quem não possui o tipo de razão, linguagem e pensamento abstrato que possuímos não merece o mesmo respeito que nós gostamos de merecer.
Nós mesmos não somos apenas nós mesmos. “Cada um de nós é uma grande cidade de células, e cada célula, uma cidade de bactérias. Somos uma grande megalópole de bactérias” (DAWKINS, 2000, p.27)[3]. Sem estas bactérias o organismo humano seria impossível, dado que elas cumprem papeis essenciais dentro de nós. O que justifica nossa arrogância?
É difícil para nós pensarmos na escala de tempo da história da vida na Terra. Bilhões de anos! Nossa mente não está adaptada para pensar nesta escala temporal, para pensar quantas espécies surgiram e desapareceram, quantas extinções em massa já houveram, quantas explosões de vida já ocorreram, quantas vezes a vida saiu e voltou para as águas... É difícil perceber o quão pequena é nossa participação nesta história (ainda que nosso poder destrutivo e criativo não seja nada pequeno), mas é preciso.
Para arquitetarmos nossos juízos éticos é importante ter em alta conta as incontáveis relações entre todos os seres vivos. Como exemplo, vale lembrar que as mitocôndrias de nossas células já foram bactérias independentes (e até hoje possuem seus próprios DNAs, diferentes dos nossos) ou das relações entre bactérias e vegetais, como no caso das bactérias do gênero Rhizobium, que permitem que as raízes das plantas absorvam nitrogênio e possam existir. É extremamente enriquecedor contemplar os incríveis e gigantescos processos de adaptações e relações, do nível dos genes ao dos ecossistemas. Trata-se de conjuntos e mais conjuntos de relações.
O assombro que a percepção desta magnanimidade pode nos gerar, que parece ser o ponto de partida tanto das ciências quanto das religiões, e esta noção – ainda que limitada - sobre tudo o que já ocorreu e continua ocorrendo para que a vida exista deveriam estar no fundamento de nossa moralidade no que se refere ao modo de nos relacionar com o mundo do qual somos parte, ou seja, com nossa natureza.
Um objetivo central das ciências, portanto, deveria ser aumentar nossa consciência sobre o mundo para vivermos vidas pautadas em princípios mais nobres, dignos e respeitosos, e não o “conhecer para dominar”, tão típico destas áreas do pensamento humano.
Alguns momentos de ruptura dentro do conhecimento científico apontam para tal direção. A passagem da visão de mundo Geocêntrica para a visão Heliocêntrica no século XVI é um poderoso exemplo: deixamos de nos ver no centro do Universo, literalmente. Com o desenvolvimento posterior da Astronomia e das lunetas e telescópios, vimos que não apenas não somos o centro do Sistema Solar, mas estamos na periferia de uma galáxia que é apenas mais uma galáxia entre trilhões de galáxias. Já no século XIX, Darwin nos reposicionou, mas desta vez não no Universo, mas na própria Terra. Não somos o centro da vida, a cereja do bolo da criação. O conhecimento científico, assim, vem nos reposicionado, transformando nossos pressupostos cosmológicos. É preciso que compreendamos a profundidade deste novo “cosmos” e aprendamos a cobrança moral que ele nos requer.
Conhecer melhor a vida na Terra, as demais espécies, nos ajuda a sabermos como agir em relação a elas. Assim, no fundamento do processo de conhecimento, há um profundo questionamento ético, e é mais do que urgente que fundamentemos e vivamos nossa dimensão ecológica de modo eticamente aceitável.
Desta forma, as lentes darwinianas nos impulsionam para que nos reconectemos com a vida na Terra e com os cuidados que ela requer.

3 – Opondo-se aos desígnios darwinianos
          Se por um lado Darwin nos ajuda a nos recolocarmos na teia da vida na Terra, por outro lado ele nos revela com crueza a brutalidade de tal teia. Quando falamos em seres que estão mais ou menos adaptados para sobreviverem em determinado contexto ambiental, podemos traduzir como “seres que conseguem se alimentar melhor dos outros, fugir melhor de seres que querem se alimentar deles e se proteger melhor das intempéries da natureza, tais como temperatura, fogo, chuva etc.”.
          Darwin, assim, nos revela um mundo terrível, uma natureza fria e impiedosa na qual ou se sobressai sobre os demais seres (tanto da mesma espécie quanto das demais – presas ou predadoras) ou vira-se comida ou cadáver. Isto acontece tanto com indivíduos quanto com espécies, que tendem a se extinguir quando deixam de estar bem adaptadas ao meio em que vivem (considerando que os meios transformam-se com o tempo, espécies antes bem sucedidas podem tornar-se minguantes e extintas no futuro).
          Se pretendemos vivenciar moralidades e políticas pautadas na preocupação com o sofrimento alheio e não apenas na sobrevivência pessoal a qualquer custo (por exemplo, oprimindo ou escravizando seres para realizarmos nossos desejos individuais), devemos negar em nós – nos termos usados por Richard Dawkins - os desígnios darwinianos, ou seja, os impulsos primeiros de nossa natureza. Trocar a autossobrevivência impiedosa, a busca por se destacar do bando a qualquer custo por tentativas de estabelecermos relações vitais compassivas e respeitosas – tanto políticas quanto ecológicas – significa opor-se à natureza. Assim como a reconexão com a natureza acima discutida, esta oposição também deve estar no fundamento de nossas mais profundas considerações morais.

Dennis Zagha Bluwol, 2019

PS.: A leitura deste texto complementa-se com a leitura do texto “Sobre o conflito entre a ética e a natureza e a emergência de uma cosmologia compassiva e vegana", presente neste blog.


[1]Ideias desta natureza não nasceram com Darwin nem ele fora o único em seu tempo a investigá-las, mas sua obra representa um ponto chave em toda a compreensão posterior sobre a vida na Terra.
[2] Da mesma forma, conhecimentos como os trazidos pela Astronomia, pela Geologia, entre outras ciências nos ajudam a entender como o Universo, a Terra e a Vida vieram a ser como são, permitindo que repensemos nossos lugares neste mundo.
[3]DAWKINS, Richard: Desvendando o Arco-Íris: ciência, ilusão e encantamento. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

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