Alguns meandros sobre a questão do consumo

  


Talvez um leitor assíduo deste blog, se é que há algum, fique em dúvida sobre as opções políticas do autor, considerando que ora parece atacar frontalmente o capitalismo, ora critica a base coletivista da ideologia socialista e o comportamento opressivo de estados que a defendem. De fato, considerando os dois como ideologias, oponho-me aos dois. Oponho-me a cosmovisões capitalistas que têm no capital seu deus, passando por cima de tudo e todos para conquistá-lo e servi-lo, assim como oponho-me a cosmovisões socialistas que tendem a oprimir os sujeitos em nome de um projeto pré-determinado de sociedade e, neste movimento, castram a criatividade individual e a capacidade de troca produtiva entre as pessoas, empobrecendo-as (existencialmente e financeiramente). Contra os opressores extremos do coletivismo e do individualismo, defendo uma visão interdependente, centrada na coexistência, e eticocêntrica. Diversos textos neste blog investigam estas definições.

Parece-me que, pragmaticamente, a única possibilidade de sociedades com tantas pessoas como as nossas prosperarem é com a união dos trabalhos e da criatividade individuais em trocas constantes. De fato, sociedades baseadas na troca (sem incorporar adjetivações que imponham ao que estou falando elementos que não estou, pode-se chamar estas trocas de “mercado"), historicamente conseguiram fazer mais pessoas saírem da extrema pobreza (a condição natural humana frente a uma natureza violenta e impiedosa), além de permitirem mais liberdade individual do que qualquer outro modelo de sociedade já experienciado. O veganismo, assim como diversas formas de liberdade e identidade individuais contemporâneas, é um dos exemplos desta liberdade possível, gostem ou não desta afirmação.

Isto não quer dizer que não haja problemas a serem corrigidos, injustiças e opressões, além de terríveis contradições aparentemente inescapáveis, mas, cabe apontar, estes são problemas do espírito humano e estariam presentes em qualquer modelo de sociedade, infelizmente. Cabe ao humano se aprimorar moralmente e realizar trocas e criações individuais e coletivas de maneira mais ética, respeitando as pessoas envolvidas, os animais e o planeta.

(Um porém importante é saber diferenciar práticas produtivas altamente destrutivas e patrões moralmente indignos do sistema de trocas ele mesmo. Esta é uma confusão marcante dos críticos à economia baseada em trocas e, assim sendo, gera esforços para destruir algo que poderia ser relativamente bom ao invés de aprimorar seu uso, o que, em outras palavras, seria aprimorar a nós mesmos).

Não há como vivermos sem produzir nada. Não há como vivermos sem causar nenhum impacto. A proposta ecovegana por mim defendida não representa nem uma visão ingênua sobre a natureza (vide o conteúdo do texto “Sobre o conflito entre a ética e a natureza e a emergência de uma cosmologia compassiva e vegana”), nem uma visão ingênua sobre a possibilidade de viver-se em completa pureza, flutuando sobre o cosmos. A vida é trágica. A proposta pragmática é reduzir ao máximo a geração de sofrimento por nossas ações e costumes. Esta mentalidade pode e deve ser inserida na produção de nossas necessidades. Rebeldias do tipo “destruam toda a produção, destruam o mercado” e outras semelhantes, falam sobre o nada, são apenas utopias, que enchem de vaidade seus defensores, mas nada ajudam a melhorarmos algo na tragédia existencial inescapável.

Seria fácil (e mais popular nos meios ativistas) bradar, como fiz por anos, pelo fim da civilização advinda da Revolução Agrícola neolítica ocorrida há dez mil anos, quando a humanidade passou a dominar as demais espécies do planeta e se sedentarizar, criando propriedade sobre a terra, hierarquias, castas sociais, opressões de classe, religiões com poderes políticos etc., ou seja, recorrer ao neolítico para questionar tudo o que existe e, como não podemos mudar o imutável, ir para casa, orgulhoso de meus panfletos utópicos, e comer alguma junk food vegana pensando na alienação generalizada.

Este comportamento seria um gasto de energia com o vazio. Tal energia poderia ser gasta estudando e trabalhando para transformar moralmente uma sociedade que já tem as instituições para garantir regras eticamente aceitáveis para a vida coletiva e meios econômicos para criarmos e trocarmos o que precisamos, tentando fazer isto da forma menos violenta possível.

Contudo, tornando o meandro ainda mais largo e curvo, isto também não significa uma carta branca ao consumo desenfreado, pois se o foco do veganismo, algo que julgo ser uma obrigação moral mínima, é o sofrimento dos animais, uma atitude essencial seria reduzir o consumo de qualquer coisa, pois todo produto, mesmo vegano e com preocupações ecológicas em sua confecção, causa impactos destrutivos aos animais, seja diretamente, seja porque estes animais habitam os ambientes destruídos pela extração, pela produção e pelo descarte de resíduos.

(Esta é uma das contradições aparentemente inescapáveis acima citadas: aumento de  produção pode gerar ganhos econômicos e melhora da qualidade de vida para as pessoas, mas aumenta, inescapavelmente, o impacto sobre a natureza e os animais; diminuição da produção gera mais pobreza e menos possibilidade de geração de novos mercados baseados na liberdade de escolha dos consumidores. Como caminhar da melhor forma possível por este terreno lamacento é algo que deveria deter nossas atenções).

O veganismo, portanto, precisa se consolidar como um novo mercado, idealmente suplantando o mercado carnista e especista (bilhões de humanos não passarão a viver de agricultura de subsistência e coleta de forma nômade ou em casas de barro e palha. Sejamos realistas). Contudo, o veganismo não deveria se tornar um novo consumismo destrutivo no qual um vegano poderia viver e consumir insanamente como qualquer carnista urbano com algum dinheiro.

O constante exercício da busca por menor impacto sobre entes sencientes precisa conviver com a necessidade inescapável de uma economia de trocas de mercadorias. Deve-se aprimorar eticamente a extração, a produção, as embalagens etc., além de consumirmos menos e mais racionalmente.

Não basta apenas não haver um animal morto em um produto para que a consciência possa dormir e celebrar a alegria vegana (esta é uma característica estranha do momento atual de veganismo: sua alegria), deixando aos animais a necessidade de se virarem com as consequências dos processos de produção de bens de consumo e com nossas embalagens, mas o mercado e a produção não se anulam por isto. Entendo as motivações para a utopia, mas não há como. Sendo assim, estes processos devem ser aprimorados eticamente. Haja vista que vivemos em um modelo de sociedade que permite mudanças, ainda que com dificuldade, trabalhemos por isto.

Uma observação final: esta visão pragmática em nada nega a diversidade de modos de viver. Uma das características de uma sociedade centrada nas trocas é que as pessoas podem, se tiverem condições para tal (não apenas econômicas, mas também culturais), escolher o quanto e como participar de tais trocas. Pessoalmente, apoio projetos de vida ligados ao consumo mínimo, à simplicidade e a produções agroecológicas, por exemplo. Mas, perceba, isto ainda faz parte de um mundo de trocas. Pessoas que vivem de outras formas, com diferentes organizações culturais e sociais, também devem ser livres para isto (com exceção dos limites éticos necessários). Mesmo um mundo de ecovilas, pretensamente “fora do sistema", seria uma forma do mundo das trocas, pois elas não produziriam tudo o que precisam. Os sujeitos das trocas não precisam ser grandes empresas com comportamento destrutivo e explorador. A economia pode ser mais localizada, com mais rigor ético e ecológico, gerando mais riqueza nas bases, para os trabalhadores com menos dinheiro, mas, ainda assim, seria economia centrada na troca. Assim sendo, seria um bom foco aprender a criar e a trocar de forma mais digna e correta, seja pensando em produtos, seja pensando em ideias. Este é um ideal verdadeiramente democrático e, no quadro geral da tragédia inescapável da existência, talvez o melhor que consigamos produzir.

 

Dennis Zagha Bluwol, 2020

 

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