Sobre a degradação da crítica e da ética pela corrupção da linguagem
Sobre a degradação da crítica e da ética pela corrupção da linguagem
A subversão da crítica
Em
seu significado mais original e verdadeiro, uma crítica é uma separação: fazer
uma crítica é realizar distinções sobre aquilo que se está percebendo (a origem
latina do verbo discernir é a mesma do verbo grego de onde sai o termo crítica[1]).
Assim, a crítica pode ser entendida como um julgamento, uma apreciação
minuciosa de algo.
Isso significa que para que se
alcance o centro do exercício da crítica - a comparação que leva ao
discernimento - é essencial que se consiga reconhecer e relacionar
diversos aspectos das questões, diversos posicionamentos e interpretações
possíveis, de forma que se perceba seus detalhes, suas nuances, seus meandros e
suas semelhanças e diferenças internas e externas.
Fazer
uma crítica, portanto, é uma ação - verbo
- e alguém com boa capacidade para realizar tal ato poderia ser caracterizado
como alguém crítico - adjetivo. O termo “crítico”, porém,
tornou-se um nome dado a alguns pacotes pré-concebidos de ideias e, ao mesmo
tempo, a quem os adota e os divulga, de preferência sem críticas a eles.
Em suma, tornou-se um substantivo.
Assim, ser crítico, substantivo, substituiu a ação (verbo) de, verdadeiramente, ser crítico - saber fazer críticas, saber criticar, saber julgar de forma complexa e nuançada. Dessa forma, é-se crítico sem se criticar, ou seja, comumente, vemos o rótulo negar o conteúdo por ele carregado: a linguagem subverte o mundo.
A corrupção da ética como corrupção da crítica
O exercício da
ética, ou seja, de se tentar ter o melhor comportamento possível em cada
situação específica, é um exemplo de pensamento crítico: é preciso perceber uma
situação com atenção, refletir rapidamente e discernir as diversas
possibilidades de ação, considerando o conhecimento acumulado, para que se
projete mentalmente possíveis consequências do ato a ser feito. A corrupção da
crítica pode, então, se apresentar como corrupção moral, e, como nos demais
casos de corrupção da crítica, é possível ser completamente imoral em defesa de
um pacote moral pré-concebido. Isso é muito comum.
Por
vezes, o próprio pacote de ideias autointitulado (auto-substantivado) crítico
também define a si mesmo como “a moral”, como a referência ética. A referência
para a moral passa a ser, então, aquilo que se define como o que é ser crítico.
Daí decorre que qualquer violência ou opressão decorrente da análise parcamente
realizada pelos sujeitos participantes de tal designação passa a ser
compreendida pelos mesmos como um ato de nobreza em nome da verdadeira moral,
já que essa seria decorrente do pacote de ideias autointitulado “crítico”, e,
portanto, considerando que estamos suficientemente doutrinados a entender “ser
crítico” como sinônimo automático de “ser o portador da verdade”, qualquer
imoralidade poderia ser entendida como o suprassumo da moral. Isso explica a quantidade de posturas
violentas em nome de pacificações e de opressões em nome de libertações que
vemos em nosso mundo.
Ética
é uma reflexão sobre a moral. Se a moral não é refletida, mas apenas seguida,
chama-se (substantiva-se) de ética algo oposto ao verdadeiro significado da
ética. A ética é assim corrompida em nome da ética.
A união entre a crítica e a moral como substantivos corrompidos produz monstros. A união entre a crítica e a moral como atos (verbos) pode gerar indivíduos moralmente dignos e sabiamente críticos, elevando o nível dos debates contemporâneos e, quem sabe?, da ação humana no mundo.
Considerações finais
- A
corrupção linguística que substantiva verbos e adjetivos alterando ou
subvertendo seus verdadeiros significados existe em diversos aspectos de
nossas vidas e explica muitos comportamentos contraditórios e diversas
formas de violência.
- Costumamos
viver o mundo pela linguagem. A linguagem nos serve, comumente, como forma
de mediação entre os sujeitos e o mundo. Corromper a linguagem é uma das
formas mais fáceis e eficientes de corromper as mentes e o mundo.
Comentários
Postar um comentário