Relativismo e absolutismo moral: alguns meandros (2022/2024)
Relativismo e
absolutismo moral: alguns meandros
Partes 1, 2 e 4: 2022
Parte 3: 2024
1 - Relativismos morais
Muito se fala atualmente sobre certo
relativismo moral dominante em nossa cultura, significando que, não havendo uma
referência moral obrigatória, é comum que a moral seja extremamente variável,
fluida, volúvel, de modo que os indivíduos tendam a alterar seus julgamentos
sobre quais atitudes seriam corretas dependendo do caso, do momento, dos
objetivos almejados com cada ação, dos desejos momentâneos ou mesmo de quem
está sendo julgado (por exemplo, alguém do mesmo campo político poderia fazer
coisas que pessoas de outro campo não poderiam fazer sem serem acusadas de
imorais).
Tal acusação - a presença massiva de
um relativismo moral em nossa sociedade - é normalmente realizada por membros
de tradições religiosas ou pessoas identificadas com alguma linha do
conservadorismo. A crença dos acusadores, na maior parte dos casos, é que a
religião daria bases morais mais sólidas, permanentes ou absolutas, o que se
oporia ao mundo contemporâneo, no qual a laicidade ganhou muito espaço,
inclusive na mentalidade de muitas pessoas que se creem religiosas.
Há substrato nessa acusação? Por um lado, sim. De fato, vivemos um tempo no qual os julgamentos são extremamente individualizados (“para mim, isso está certo”), ainda que não necessariamente os indivíduos consigam justificar o motivo pelo qual defendem esta ou aquela opinião. As normas religiosas não são mais aceitas na íntegra nem mesmo por parte substancial das pessoas associadas a religiões (“sou católico, mas não tenho que concordar com a visão do papa ou da Igreja sobre aborto ou camisinha”) e as reflexões filosóficas sobre ética não interessam à esmagadora maioria da população.
Até aqui, a acusação dos religiosos tem fundamento. Contudo, faz-se necessário navegar
melhor pelos meandros da questão, para não encalharmos em margens fáceis.
A religião e as tradições culturais
estabelecidas, as acusadoras do relativismo moral de nosso tempo, representam
de fato uma oposição a tal situação? Parece-nos que não: é fácil perceber que
princípios morais importantes, que embasam comportamentos que podem ser
responsáveis pela geração de sofrimento, violência, opressões etc., ou seja,
comportamentos especialmente relevantes do ponto de vista moral, são
extremamente variáveis entre cada tradição cultural e religiosa, entre cada
linha de uma mesma tradição religiosa, entre membros e autores de uma mesma
linha de uma mesma tradição religiosa e mesmo entre diferentes passagens de um
mesmo livro religioso central para alguma religião.
Ou seja, para muitas discussões
morais mais complexas, ao buscarmos respostas nas tradições religiosas,
percebemos que tais respostas dependem do texto, dependem do trecho do texto,
dependem do discurso, dependem da linhagem, dependem da interpretação, dependem
do interesse do religioso, dependem das causas que o religioso deseja anexar à
sua religião, dependem do mestre, dependem do guru, dependem, dependem,
dependem…
Temas morais são, portanto,
extremamente relativos no interior das tradições que acusam o relativismo
moral. Portanto, assim como na cultura laica de nossos tempos, há em tais
tradições, na questão da moral, uma relatividade muito grande, que também se configura
como uma forma de relativismo estrutural.
2 -
Absolutismos morais
Contudo, os meandros não param por
aí. Se há um viés moral relativista de forma estrutural no pensamento religioso
e em diversas tradições culturais, há também, ao mesmo tempo, um viés
absolutista. Isso se dá pois, quando se aceita que um deus, um ser iluminado,
um guru… deixou claro qual é o comportamento correto sobre certa questão, o
seguidor da doutrina em questão pode defender tal postura mesmo quando análises
racionais sobre o mesmo fato concluem que tal moralidade é, em realidade,
imoral.
Podemos reconhecer tal forma de agir
em diversas questões éticas ligadas ao respeito entre os seres
humanos, assim como na questão ética ligada ao modo como a humanidade trata
outras espécies de animais, haja vista que a senciência das mesmas e, portanto,
a realidade do sofrimento a elas gerado por nossos atos, são ignoradas ou
vítimas de zombarias, dado que os livros considerados sagrados permitem o
consumo de animais e a exploração deles para finalidade humanas.
Esse viés absolutista da moral
religiosa (e, costumeiramente, das tradições culturais) breca o avanço social
de moralidades mais dignas e respeitosas, advindas de reflexões racionais
baseadas em dados empíricos. A moral religiosa e tradicional, portanto, apesar
de trazer consigo elementos positivos e ter tido papeis importantes na história
humana, peca tanto pelo seu relativismo quanto pelo seu absolutismo.
O absolutismo moral, contudo, não
reside apenas nas religiões. Já vimos que o relativismo moral é bastante
difundido no mundo laico, mas, simultaneamente, é também muito comum que as
pessoas se apeguem fortemente tanto às próprias considerações morais, quanto
aos desígnios de suas ideologias, correntes políticas e grupos sociais, de
forma que, em suas mentes, tais crenças justificariam todo tipo de violência e
opressão em nome de alguma verdade a ser alcançada. Trata-se, portanto, de uma
forma de absolutismo moral.
Assim como, em nome da salvação
pessoal, uma religião pode requerer que o fiel defenda certos valores, por
vezes imorais, como se fossem a moral desejada por Deus, ideologias políticas,
em nome da engenharia social por elas propagadas, podem requerer de seus
seguidores que eles defendam certos valores, por vezes imorais, como se fossem
moralmente aceitáveis em nome do futuro almejado.
Dessa forma, tanto na moral
religiosa, quanto na moral secular, pode acontecer que a moral dependa de quem
está praticando a ação e contra quem a ação é praticada (ser relativista) e que
certas normas morais devam ser seguidas sem que o indivíduo as questione (ser
absolutista). O absolutismo e o relativismo caminham juntos e costumeiramente
expressam-se ao mesmo tempo.
3 - Individualismo e coletivismo
O relativismo moral comumente expressa uma forma de individualismo, haja vista que cada sujeito ou grupo julga ser correto aquilo que convém aos seus próprios interesses e desejos.
Vale realçar, contudo, que quando o
relativismo moral é praticado por um grupo ou instituição, ele configura, ao mesmo
tempo, também um relativismo coletivista (o que importa é o interesse do meu grupo - um eu expandido -, e eu devo seguir tais regras mesmo que não haja justificativa racional para tal código moral).
Ainda, o relativismo, tanto em sua forma individualista, quanto em sua forma coletivista, ao se dogmatizar, torna-se uma forma de absolutismo, no qual a margem para uma honesta reflexão moral sobre como evitar a geração de sofrimento desnecessário, de injustiça e de opressão comumente é extremamente limitada ou mesmo inexistente.
Já o absolutismo moral comumente expressa
uma forma de coletivismo, haja vista
que diz respeito a pessoas seguindo irrefletidamente a moralidade previamente
estipulada por um grupo, por uma instituição, por uma ideologia ou por uma
tradição, mesmo quando os comportamentos exigidos ou autorizados por tal
moralidade são responsáveis pela geração de sofrimento ou injustiça.
Vale realçar, contudo, que o absolutismo moral praticado por um indivíduo fortemente apegado aos próprios julgamentos morais, sem margem para alterações e aprimoramentos, configura, ao mesmo tempo, um absolutismo e um relativismo individualista.
Em suma: O absolutismo é a dogmatização de um relativismo, e o coletivismo é a expansão do individualismo.
4 -
Coexistência do absoluto e do relativo
O relativismo moral e o absolutismo moral coexistem, portanto, tanto na religião quanto no mundo laico, e ambos são danosos para a ética, pois não privilegiam a obtenção de conclusões lógicas a partir de reflexões sistemáticas e contínuas sobre como evitar a geração de sofrimento desnecessário, de injustiça e de opressão. Se não encalham nos gostos pessoais (relativismo radical), podem até acertar em vários pontos, mas também não se recusarem a reproduzir erros morais (absolutismo radical).
Mas isso significa que toda a relatividade e todo o viés
absoluto da ética devem ser negados? Se assim fosse, restaria apenas o vazio.
Contudo, é neste ponto que novos meandros podem nos levar para fronteiras mais
saudáveis.
Reflitamos juntos: se entendermos a
ética como a tentativa de estipularmos padrões de comportamento capazes de
diminuir o sofrimento gerado por nossos atos, ou mesmo, quando possível, o
sofrimento não gerado por nossos próprios atos, ou seja, se associarmos a ética
com o sofrimento, começamos a ter um terreno fértil para reflexões racionais
capazes de, se não conseguirem definir a melhor opção de ação para todos os
casos, ao menos conseguirem diminuir muito a quantidade de opções aceitáveis ou
justificáveis.
Nas palavras de Harris (2003, p.66):
considerações morais se traduzem em
fatos sobre como nossos pensamentos e ações afetam o bem-estar de criaturas
conscientes, como nós mesmos. Se existem fatos a serem descobertos sobre o
bem-estar de tais criaturas — e há —, então deve haver também respostas certas
e erradas a perguntas de cunho moral.
Em suma, é possível, se o objetivo da ética for diminuir o sofrimento gerado por cada ação, que, com bases fidedignas sobre como cada ação pode impactar seres sencientes ou ambientes nos quais seres sencientes vivem, e uma dose de raciocínio lógico, chegue-se às melhores opções morais. Esse resultado possui, então, uma nuance absoluta. Ele não depende da vontade de cada sujeito nem da tradição na qual cada pessoa nasceu ou se inseriu. Ele depende apenas da reflexão almejando atos que sejam o menos violentos, destruidores e opressores possível. Tal moral, que deve criar caminhos absolutos, é resultado de conclusões obtidas pelo pensamento ético racional e complexo, e não de princípios dados sem justificativa.
Um exemplo: não importa se tradições
culturais, religiosas e familiares apoiam o consumo de animais. Se temos
certeza (e a ciência já a tem) que animais são sencientes, ou seja, são capazes
de sentir e ter algum grau de consciência do mundo e de si mesmos - em suma,
são capazes de sofrer e de experienciar diversas emoções -, a conclusão lógica
é que não temos o direito de escravizá-los, torturá-los e assassiná-los. Assim,
não há como se defender que comer animais ou usar suas secreções (leite), seus
ovos, suas peles, seus corpos… possa ser moralmente defensável. Trata-se de uma
conclusão óbvia, racional, derivada da percepção do mundo tal como ele é, e não
da opinião de uma pessoa, um livro, um guru ou um deus. Sendo assim, tal
conclusão deve, sim, ter um viés absoluto, inclusive no sentido de que há
sentido em requerer que ela deveria ser seguida por todos.
É desejável, portanto, que tenhamos
um viés absoluto em conclusões éticas baseadas no mundo empírico e na lógica (é
preciso que fronteiras sejam definidas), caso nosso objetivo seja diminuir
o sofrimento gerado por nossos atos. Tal viés absoluto, porém, não representa
um absolutismo cego, já que não é determinado a priori, sendo imposto como
obrigação, sem margem para alterações e melhoramentos. Esse viés absoluto é
derivado do estabelecimento de relações. Não é relativista, mas é relacional,
e, portanto, relativo: relativo ao mundo empírico, à realidade do sofrimento e
ao pensamento lógico que visa o estabelecimento da melhor ação possível para
cada situação. É desejável, portanto, que tenhamos também um viés relativo
em conclusões éticas baseadas no mundo empírico e na lógica (no interior das fronteiras, meandros devem
ser navegados).
Vimos que, tanto nas tradições
religiosas, quanto no mundo laico, o absolutismo e o relativismo moral
coexistem, e que é preciso que construamos um modelo de ética no qual
absolutismo e relativismo - duas faces da irracionalidade - não sejam
valorizados. O absolutismo tende a matar o relativo, e o relativismo tende a
matar o absoluto. Contudo, precisamos de uma reflexão ética capaz de ser ao
mesmo tempo relativa e absoluta: que tenha a sabedoria necessária para lidar
com os meandros da existência sem, com isso, ultrapassar fronteiras morais
obrigatórias.
É preciso que saibamos conviver com a
coexistência do absoluto e do relativo, que não precisam anular um ao outro.
Para isso, precisamos ser capazes de termos uma visão relacional, complexa,
apta a compreender um mundo estruturado com base em coexistência e
interdependência. A moral vive aí, nesses meandros, no interior de tais
fronteiras: ela é fruto de relações, mas, ao conseguir estabelecer direções que
gerem menos sofrimento, violência e opressão, ela deve ser entendida como algo
a ser seguido, sem espaço para desejos pessoais, individuais, identitários,
ideológicos, religiosos etc.
Essa postura - a busca de uma ética racional -
é capaz de gerar uma resposta única e perfeita para todas as questões? Não. A
realidade é complexa, vivemos imersos em um mundo de sofrimentos, em uma
natureza impiedosa, e, por vezes, todas as opções são ruins. Contudo, ela pode
nos colocar no caminho mais certo possível e excluir posições nitidamente
imorais, ainda que, no interior de tais limites, haja meandros, nuances e
dubiedades.
O relativismo e o absolutismo possuem como frutos, costumeiramente, a violência, a opressão e a morte. A coexistência entre o absoluto e o relativo tende a uma moral mais saudável, pois está focada no mundo real, empírico, e na real vontade de diminuir o sofrimento, especialmente o gerado por atos intencionais. Eis algo pragmático e que podemos, como indivíduos e como sociedade, arquitetar.
Referência bibliográfica
HARRIS,
Sam. A Paisagem Moral: como a
ciência pode determinar os valores humanos. São Paulo, Companhia das Letras,
2013, 305p.
Comentários
Postar um comentário