Tradição e Moralidade (2018/2024)
Tradição e Moralidade
Parte I: simulacros éticos (2018)
O papel das tradições em nossos
comportamentos individuais e coletivos é comumente e constantemente um ponto de
tensões. Por um lado, é por via das tradições que aprendemos o que a humanidade
já construiu, já pensou e já viveu. Por outro lado, as tradições podem manter
vivas uma série de comportamentos reprováveis - e por vezes nefastos - que
poderíamos já ter abandonado caso eles não fizessem parte de “pacotes” de
ideias tradicionalmente estabelecidos.
É importante para qualquer ser
humano conhecer os caminhos pelos quais nossa espécie já caminhou, apropriar-se
deste histórico e deixar-se influenciar pelas conquistas intelectuais, morais e
materiais dos milhares de anos de história documentada. Contudo, é preciso
haver cuidado para não se dogmatizar as tradições, de forma que o simples fato
de algo ser tradicional o torne sagrado, inquestionável ou obrigatoriamente
valoroso.
Há enormes perigos morais quando
tradições não possuem abertura para se transformarem, pois, apesar de trazerem
até nós as reflexões morais das gerações passadas, quando elas se fecham no
passado podem brecar a reflexão moral contemporânea, voltada para assuntos ou
nuances argumentativas que não importavam aos pensadores do passado oriundos de
tais tradições, de forma que, para alguns assuntos de grande importância ética,
as tradições por vezes acabam sendo mais uma forma de castração do avanço moral
da humanidade do que uma forma de ajudá-la a possuir padrões morais mais justos
e respeitosos.
Como falar em mudanças de
comportamento quando o comportamento de alguém, mesmo que errado (ao passar
pelo crivo racional e compassivo da ética) é chancelado, praticado ou desejado
por alguma tradição?
Por exemplo: como defender uma
abordagem ética de respeito aos animais, como o veganismo, no contexto de uma
tradição na qual o tratamento cruel de animais faz parte de sua estrutura,
sendo chancelado ou mesmo requerido por ela?
Nesse contexto, um pessoa vegana,
por mais que suas ações sejam pautadas em uma reflexão ética lógica e
compassiva, seria reconhecida como uma inimiga da tradição, uma herege, uma
pecadora, pois estaria negando os costumes estabelecidos ou os desejos e comandos
atribuídos a uma divindade, a seres iluminados, a gurus etc. Por tal lógica, o
comportamento compassivo e justo deveria ser rechaçado em nome da verdade
suprema sobre a compaixão e a justiça, algo obviamente perverso.
Ser compassivo, justo e bom, no
contexto das tradições, está intimamente vinculado a seguir os exemplos e
códigos de conduta estabelecidos, mesmo quando tais exemplos e códigos não são
compassivos, justos nem bondosos (e, no caso de nossa relação com os animais,
costumeiramente não são).
Perde-se, assim, o real
significado das palavras, pois as pessoas tendem a defender certas palavras
(certos conceitos inerentes à doutrina escolhida ou herdada) mesmo que o
significado real das mesmas esteja sendo negado ou contradito (é possível
defender a compaixão, a bondade e a justiça como termos estruturais de uma
cosmovisão sem ser compassivo, bom e justo, por exemplo). Trata-se de um
simulacro ético, um simulacro da moral.
Em resumo, nenhum ato responsável
pela geração de sofrimento a algum ser deve ser conservado ou ocultado por
fazer parte de alguma tradição. Se almejamos que nossa sociedade esteja aberta
para se aprimorar eticamente, precisamos postular que nenhum livro ou tradição
tem o direito de dar a alguém o direito de ser cruel. Essa é uma fronteira
ética
Parte II: a guerra do aquém e do além (2024)
É preciso que os questionamentos
às tradições respeitem os limites da fronteira ética acima citada. É válido
questionar tradições quando verdadeiramente se almeja ir além em certos
pressupostos éticos, mas não quando se almeja estar aquém.
O diálogo crítico com os
conhecimentos tradicionais não deve se dar como forma de legitimação de uma
derrocada moral. A guerra entre o além e o aquém é marcante na história e na
psique humanas, e é preciso que se esteja atento a ela para que não se misture
o joio e o trigo. Duas vozes em diálogo crítico com uma certa tradição podem
ser vistas como parceiras, mas, em realidade, estarem em lados diametralmente
opostos do debate.
Espera-se de tradições
verdadeiramente sábias, honestamente abertas ao constante aprimoramento moral,
que o diálogo com a voz que almeja o além seja desejado e amado.
Em tradições inerentemente
ignorantes e más, o comum é que quaisquer críticas sejam extintas. Ainda,
possivelmente, nas profundezas do real, não perceberá o militante do aquém que
há mais em comum entre ele e tal tipo de tradição do que gostaria de contemplar
sua estrutural vaidade.
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