Ensino de Geografia no Contexto das “Ciências da Natureza”: em busca de uma Educação Cosmológica Eticocêntrica


Revisão de artigo escrito no final de 2023 e publicado no livro "Revisitando a teoria e prática a partir da formação de professores: programas PIBID e PRP"

1 Apresentando problemas

1.1 A absurda cartografia do EU

A maneira como percebemos a nós mesmos, ou seja, os limites que damos (mentalmente) para nossas fronteiras individuais, estabelecem um princípio para a delineação do modo como ocupamos nossos lugares nas redes de conexões que formam o mundo. O que concebemos por “eu” molda o modo como delineamos o que é o mundo e o que somos nós em tal mundo, pois esse processo mental configura também os lugares que destinamos aos outros e ao “todo” naquilo que concebemos ser a geograficidade de nossas próprias existências.

Abaixo, apontamos três características marcantes da geograficidade dos “eus" em nossa sociedade (cartografá-las seria um desafio!):

 

a) O “eu” como centro do mundo

Trata-se da visão de mundo que coloca o sujeito como centro do universo e o mundo como estando em sua função. Essa visão reflete um egoísmo infantil e a falta de habilidade de ver o mundo sem centros, como uma teia de relações e coexistências.

Além de uma questão moral, trata-se também de uma questão geográfica, já que ela ajuda a conformar a percepção espacial dos sujeitos, configurando, por exemplo, suas noções de identidade, individualidade e alteridade e de centro e periferia - geralmente, o “eu” no centro e tudo o mais na periferia (ainda que os objetos periféricos estejam alocados em diferentes distâncias, diferentes raios em relação ao eu central, formando um conjunto de círculos concêntricos de acordo com o quanto cada objeto é útil ou desejado pelo “eu”, o monarca absoluto de tal reino).

Assim como a cartografia pode ser eurocêntrica, nossa cartografia pessoal pode ser, e comumente o é, egocêntrica.

Há poucos séculos, a maioria de nós largou o geocentrismo. Conseguimos aceitar que nosso planeta (nosso lugar coletivo) não é o centro do cosmos. Mas ainda estamos arraigados aos mais pesados de nossos centrismos: o antropocentrismo e, mais ainda, o egocentrismo, que lhe é correlato, mas superior, anterior e mais poderoso (de tal forma que o antropocentrismo pode ser compreendido como apenas uma expansão do egocentrismo).

Em sentido geográfico, ainda que não geométrico, essa percepção deformada do próprio lugar no mundo, ao se empoderar, pode gerar um fenômeno em que:

 

b) Os “eus” são maiores do que o mundo

Neste caso, o egocentrismo alcança proporções absurdas. O corpo/a vida/os desejos de um indivíduo representam para ele não apenas tudo o que importa no mundo, com os objetos externos a ele só importando à medida que o servem, mas o mundo exterior ao sujeito está tão reduzido a uma mera contingência à serviço do ente, que o “mundo” se torna menor e menos importante do que cada indivíduo.

Se se fosse representar tal fenômeno com algum tipo de cartograma, o mundo deveria ocupar uma área menor do que a ocupada pela pessoa que sofre de tal distorção espacial. Possivelmente, tal resumido e restrito mundo seria algo externo ao ente de onde partiriam todos os tipos de conexões em sua direção: uma mistura entre anamorfose e mapa de fluxo unidirecional.

Isso exige também uma reflexão sobre escala, pois, na representação mental que o ente faz do mundo concreto, ele representa a si mesmo em uma escala diferente das escalas com as quais representa aos demais entes e fenômenos (aos outros e à totalidade do mundo).

 

c) Cada ente é um mundo

As duas características acima descritas - o eu como o centro do mundo e o eu como algo maior do que o próprio mundo -, como ilusões em desacordo com os fundamentos reais do mundo material/concreto, criam entes que vivem mundos inexistentes, mundos que contradizem o mundo objetivo. Cada ente vive em si e para si em um mundo que apenas comporta a ele mesmo e a tudo o que o serve (expansões de si mesmo). Ele é o mundo, o que revela um profundo processo de ensimesmamento dos entes. Configura-se, assim, mais uma distorção geográfica e ética.

Sobre tal mundanização do eu, cabem alguns questionamentos cosmológicos e cartográficos: que mundo e que mapa são possíveis quando apenas um fenômeno é todo o mundo, não sendo tal mundo, portanto, formado por uma série de fenômenos que se localizam uns em relação aos outros? Há cartografia sem relações entre lugares? Um ente isolado é localizável?

É possível se falar em um “lugar” com apenas um ente que não pertence a uma rede de relações? Ou se trata de um objeto não passível de ser georreferenciado? Como discutir sobre fronteiras se o sujeito é todo o mundo?

Necessariamente, portanto, a discussão sobre o “eu” leva à discussão sobre a existência da alteridade. Dependendo da noção de “eu” praticada (ou seja, da resposta à pergunta “quais são os meus limites?”), certas noções sobre a alteridade terão lugar. Trata-se, portanto, de uma questão ética fundamental.

A tradicional discussão geográfica sobre fronteiras pode se alimentar desses questionamentos, além de alimentá-los.

Logicamente, a temática da alteridade nos leva à noção de totalidade, de conjunto de entes coexistentes/interdependentes, o que se pode considerar como a categoria “natureza”.

Em suma, se nossas cosmovisões não nos levam a nos ver como partes de redes maiores do que a de nossos interesses individuais (espacialidade do ente fechado em si mesmo), que tipo de espaço-temporalidade coletiva é gerada? Como ficam, por exemplo, as relações espaciais entre humanos e outros humanos ou entre os humanos e os demais entes da natureza?

Tais questões são, portanto, de grande importância para se refletir sobre diversos de nossos conflitos políticos e ecológicos.

Sobre os conflitos políticos que marcam a existência humana nas mais diferentes dimensões, vale apontar, de modo extremamente resumido, que eles se dão, usualmente, quando há indivíduos tentando suplantar a coletividade em nome de interesses pessoais[1] ou quando há coletivos tentando aniquilar os indivíduos em nome de engenharias sociais. Em suma, há sempre uma relação desarmônica e belicosa entre os limites do eu, do outro e do todo.

O egocentrismo, assim, estrutura certa cosmovisão dominante que, por orientar a ação dos indivíduos, delineia, no jogo das negociações coletivas, o perfil de nossa sociedade, ou seja, as relações políticas.

Contudo, as relações conflituosas não se limitam às relações entre humanos, mas transcendem para as relações com as demais espécies e com a natureza como um todo. Sobre essas problemáticas ecológicas advindas de visões deformadas sobre os limites do próprio “eu”, apontamos abaixo algumas reflexões.

 

1.2 Crise ecológica e alienação geográfica

Cada um de nós é o resultado momentâneo e em constante transformação de nossas trajetórias de vida, que já se entrecruzaram com outras incontáveis pessoas, animais, ares, terras, águas etc. e estão a todo instante se relacionando, em nossos “aquis” e “agoras”, com todas as pessoas, animais, ares, terras, águas etc. que nos cruzam e, indiretamente, com todas as pessoas, animais, ares, terras, águas etc. que já cruzaram as trajetórias dessas pessoas, animais, ares, terras, águas etc. e das pessoas, animais, ares, terras, águas etc. que cruzaram com tais pessoas, animais, ares, terras, águas etc., numa teia de coexistência, interdependência e impermanência tão complexa e imensa que nos remete ao infinito.

Nos termos de Doreen Massey (2008, p.202), podemos entender os lugares como encontros de trajetórias, no sentido de que nosso “´aqui` é um imbricar de histórias no qual a espacialidade dessas histórias (seu então tanto quanto seu aqui) está, inescapavelmente, entrelaçada”.

Assim, os lugares

“nos envolvem, forçosamente, nas vidas de outros seres humanos e, em nossas relações com não-humanos, indagam como responderemos ao nosso encontro temporário com [...] rochas, pedras e árvores particulares. Eles exigem que, de uma forma ou de outra, confrontemos o desafio da negociação da multiplicidade.” (Ibid., p.204).

 

Pode-se concluir que a interdependência, a multiplicidade (coexistência, diversidade) e a mutabilidade (impermanência) são elementos fundantes da realidade. Perceber, compreender, sistematizar ou viver o mundo sem considerar essas suas características essenciais é gerar mentalmente um mundo equivocado, é vivê-lo de forma equivocada e, possivelmente, nele gerar equívocos.

A afirmação acima parece forte demais, mas basta observar com alguma cautela o modo como tantos membros de nossa sociedade (os “eus que habitam o centro do mundo, os “eus” maiores que o mundo, os bilhões de “eu-mundos” em constante choque - de uma caminhada na calçada às guerras mundiais) habitam o mundo coletivo/concreto para que ela se torne um dado empírico.

Dito de outro modo, ao nos atentarmos para os comportamentos individuais comumente observados em nossa sociedade, parece-nos correto afirmar que eles demonstram certa crença generalizada e estrutural na constituição das identidades individuais de que é possível que cada indivíduo seja um ente isolado dos outros humanos, não-humanos e dos ambientes, de tal forma que importaria no mundo apenas aquilo que é útil para que cada ente supra seus próprios interesses e desejos, como se as coisas estivessem no mundo, perenemente, apenas para satisfazer os prazeres individuais de cada ente-mundo.

Em suma, nossa cultura individualista e possessiva é prova de que pouco ou nada consideramos as características fundamentais da natureza acima comentadas na estruturação de nossas cosmovisões.

Se as características que constituem o mundo tal como é – seus fundamentos naturais ou ecológicos - não são elementos constituidores de nossas cosmovisões hegemônicas, pode-se concluir que vivemos de modo antagônico ao mundo. Há um fundamento não virtuoso no modo como existimos no mundo, uma crise de habitação de nossa própria natureza, o que configura uma crise ecológica, já que se trata de entes ecológicos – relacionais, coexistentes, interdependentes, impermanentes - que não se percebem como tal e agem como se não o fossem.

Tais características ecológicas são percebidas empiricamente pela simples observação do mundo vivido. Sobra a hipótese de que se não as percebemos, se não percebemos com a devida atenção e acuidade o mundo em que habitamos, vivemos uma cultura montada sobre enormes embotamentos, como o embotamento da capacidade de atenção[2] aos lugares que somos, criamos e compartilhamos e o embotamento da percepção da imensa rede ecossistêmica da qual fazemos parte.

Se nossa capacidade de estarmos atentos ao mundo em que vivemos está embotada, se nossa consciência sobre nossos lugares no mundo está embotada, então, de certa forma, estamos alienados do mundo. Podemos nomear essa alienação de “alienação geográfica”, já que trata do embotamento de nossa capacidade de percepção e significação de nossos lugares, ou seja, do embotamento do pensamento voltado para “o porquê e o como as coisas estão onde estão”, do embotamento da habilidade de entender a si mesmo como parte de redes de conexões imensamente complexas (que incluem nós mesmos, nossos corpos, as pessoas, animais, vegetais e demais fenômenos/processos com os quais nos relacionamos e a participação de cada um desses fenômenos/processos em redes processuais mais amplas e complexas).

Em suma, trata-se de uma alienação em relação à verdadeira espacialidade/geograficidade do mundo concreto, material e natural. Há, então, uma óbvia conexão entre tal “alienação geográfica” e a existência de uma crise ecológica. Ao viver tal cosmovisão, tornamo-nos alienados das bases da vida.

 

2 Buscando soluções éticas e pedagógicas: o ensino de Geografia no contexto das Ciências da Natureza

A sequência do presente ensaio visa apontar caminhos para se lidar com os problemas acima expostos, isto é, a ideia é averiguar como o ensino de Geografia, aliado às (demais) Ciências da Natureza, pode trabalhar no sentido oposto da alienação geográfica que está na base tanto de problemáticas ecológicas atualmente em curso, quanto de diversos conflitos políticos.

Cada sujeito está inserido, é moldado e ajuda a modificar redes espaciais e temporais tanto antigas quanto novas, tanto longínquas e universais, quanto próximas e individuais, ou seja, a existência humana se dá em múltiplas escalas espaciais e temporais. Cabe almejar, portanto, como objetivo do trabalho pedagógico/escolar da Geografia, a formação de indivíduos hábeis em perceberem a si mesmos no contexto do alto grau de complexidade inerente à imensa miríade de interconexões - de encontros de trajetórias - que embasa a possibilidade da existência de cada sujeito e une entes humanos, entes não-humanos e paisagens[3]uma educação antagônica às várias formas de alienação geográfica vigentes.

O encontro entre a Geografia e as (demais) Ciências da Natureza pode ser lido nessa chave, haja vista que as Ciências da Natureza podem colaborar com o aprimoramento da percepção da espacialidade das existências individuais e coletivas[4]. Elas podem nos fornecer conhecimentos necessários para que saiamos do centro do mundovejamos o mundo sem centros e atentemos para a incrivelmente enorme quantidade de redes de interdependências que formam aquilo que costumamos chamar de natureza, o que traz em si um forte teor ético, imprescindível para a realização virtuosa do processo educativo.

 

3.1 Exemplo de sequência didática

A sequência didática abaixo apresentada une preocupações geográficas com conteúdos comumente trabalhados pelas Ciências da Natureza, tendo como norte algumas reflexões de ordem ética.

A ideia de fundo, dialogando com tudo o que fora apresentado acima neste ensaio, é a alteração do modo como cada indivíduo se localiza em relação aos demais e ao todo, ou seja, como cada indivíduo percebe sua própria inserção na absurdamente complexa rede de interconexões e interdependências que formam aquilo que chamamos de mundo.

O curso começa com a famosa imagem nomeada por Carl Sagan como “O Pálido Ponto Azul”[5]. Trata-se de uma foto do planeta Terra obtida pela sonda espacial Voyager 1 em 1990, quando ela estava prestes a deixar o Sistema Solar, a seis bilhões de quilômetros de distância do Sol. Considerando tal distância, o planeta aparece como um minúsculo ponto, no qual a luz do Sol é refletida, em meio à escuridão cósmica. Tudo o que conhecemos, tudo o que já vivenciamos, toda a história humana, todas as tradições, culturas, religiões, guerras, experiências… enfim, tudo o que podemos imaginar que tenha acontecido nestes mais de quatro bilhões e meio de anos de existência do planeta ocorreu na superfície deste ponto[6], que, para nós, é enorme, mas, para o universo, é minúsculo.

Uma reflexão feita com os estudantes a partir dessa imagem é que percebemos o mundo a partir de nossos próprios corpos. Nosso olhar sempre parte de nós mesmos. Nossa audição, olfato, tato e paladar, idem. Para onde apontamos nosso corpo, estaremos no centro da percepção. Do ponto de vista estrito de nossa percepção natural/corporal, somos o centro de nosso mundo, o que pode ser nomeado como uma compreensão egocêntrica da existência. Contudo, ao vermos a Terra como um minúsculo ponto em meio à escuridão, nossa perspectiva é provocada a mudar radicalmente.

Podemos, como complemento (e isso é sugerido aos estudantes), nos imaginarmos como pequenos objetos ou como pequenos fluxos impermanentes na superfície deste minúsculo pontinho em meio à escuridão cósmica. Assim, nosso egocentrismo é profundamente questionado. Por via da imaginação e do pensamento racional, deixamos de ser o centro do Universo.

A sequência didática segue com uma alteração escalar. Projeta-se uma imagem de campo profundo realizada pelo telescópio espacial Hubble[7]. Nela, deixamos de ver nosso próprio planeta. Os pequenos pontos na imagem agora são galáxias, milhares de galáxias. A mediação segue revelando que o Universo possui entre centenas de bilhões e dois trilhões de galáxias, cada uma com cem a duzentos bilhões de estrelas, totalizando algo na ordem de sextilhões de estrelas. Soma-se ainda que cada estrela é milhões ou bilhões de vezes maior do que a Terra (o Sol, que é uma estrela mediana, é cerca de um milhão de vezes maior do que nosso planeta) e cada uma delas se distancia da “vizinha” por enormes distâncias (como exemplo, Alpha Centauri, a estrela mais próxima do Sol, fica a quase quarenta trilhões de quilômetros de nós, e essa é apenas uma estrela em sextilhões).

Com esses dados e números, recolocados de diversas maneiras na fala do professor, vai se criando uma impressão da imensidão do cosmos, o que nos transforma em partículas ainda menores do que aquelas que averiguamos em nossa relação com o planeta Terra.

Propositalmente, essas atividades com as duas imagens dão início à sequência didática, haja vista que um de seus objetivos principais é provocar mudanças de perspectiva nos estudantes. A ideia é que tentem sair da posição em que cada indivíduo humano é o centro do Universo para uma posição em que possamos nos ver do ponto de vista do Universo. Uma forma é, ao menos na imaginação, despersonalizar o ente (cada um de nós) e percebê-lo como mais um componente do cosmos.

Certeiramente, Neil Postman (2002, p.108) compreendeu o papel do ensino de Astronomia nas escolas:

quando se trata de temor reverencial, não há nada que se compare com a astronomia”. [...] Seu estudo inevitavelmente suscita perguntas fundamentais sobre nós mesmos e nossa missão. [...] A Astronomia oferece confirmação de uma ideia intuitiva expressa ao longo dos séculos por pessoas de diferentes culturas. Heráclito escreveu que todas as coisas são uma só. Lao-tzé disse que todas as coisas são reguladas por um único princípio. O cacique de Seattle da comunidade suquamish declarou que todas as coisas estão conectadas. [...] A astronomia, portanto, é uma disciplina chave se desejamos cultivar em nossos jovens um senso de temor reverencial, interdependência e responsabilidade global.

 

A sequência didática segue revelando que o processo de evolução do Universo - cuja origem, no modelo mais aceito pela comunidade científica, seria o Big Bang (que é ensinado como um conteúdo do curso) - passa obrigatoriamente pelo papel crucial das estrelas.

Dentre os assuntos trabalhados em sala, é demonstrado que, no início do Universo, logo após o Big Bang, os únicos elementos existentes eram o Hidrogênio e um pouco de Hélio. As estrelas são formadas justamente por esses elementos, principalmente o Hidrogênio no estado gasoso. É no interior das estrelas que quase todos os demais elementos são gerados e, então, com a “morte” das mesmas, eles são lançados para o Universo. Com o tempo, dada a “morte” de muitas estrelas (que “vivem” entre centenas de milhões e alguns bilhões de anos), muitos elementos mais pesados que Hidrogênio e Hélio passaram a povoar o Universo. Por causa disso, não apenas novas estrelas seguiram sendo formadas, mas também corpos feitos de rochas e/ou água, como planetas, satélites naturais, asteróides, meteoroides ou cometas.

A Terra, portanto, é feita de material produzido no interior de estrelas previamente existentes (vale lembrar que o Universo já existia há cerca de nove bilhões de anos quando o Sistema Solar surgiu), e não apenas nosso planeta é feito de “poeira das estrelas”, mas nossos próprios corpos também o são. Não apenas somos pequeníssimas partes do Universo, mas somos feitos da matéria do Universo, especialmente de matéria estelar:

[...] à exceção do hidrogênio, todos os átomos que compõem cada um de nós - o ferro no sangue, o cálcio nos ossos, o carbono no cérebro - foram fabricados em estrelas vermelhas gigantes a milhares de anos-luz no espaço e a bilhões de anos no tempo. Somos feitos, como gosto de dizer, de matéria estelar (SAGAN 2006, p.31).

 

            Nas palavras de Dawkins (2000, p.79):

Ao decompor a luz estelar em espectroscópios, ficamos sabendo que as estrelas são fornalhas nucleares, fundindo hélio a partir do hidrogênio que predomina na sua massa; depois aglomerando os núcleos de hélio na cascata posterior de impurezas que formam a maior parte do resto dos elementos, forjando os átomos de tamanho médio de que somos finalmente feitos.

 

Na mediação em sala de aula, compara-se os elementos que formam nossos corpos e os elementos que formam toda a natureza. São os mesmos. O ferro de nosso sangue é o mesmo dos pés das mesas da sala de aula, que veio de minério de ferro, de rochas, de montanhas; o cálcio de nossos ossos é o mesmo das conchas e dos corais; a água, formada por Hidrogênio e Oxigênio, que forma cerca de 70% de nosso corpo, é a mesma água dos rios e da chuva. Em suma, nosso corpo é mais uma forma de ordenação da matéria do planeta Terra, que, por sua vez, é mais uma forma de ordenação da matéria do Universo, especialmente das estrelas.

Essa reflexão, que corrobora o processo de questionamento do egocentrismo, é ampliada com a consideração sobre a trajetória de toda a matéria que nos forma. Nosso corpo se recicla constantemente. Células morrem e novas células nascem, usando aquilo que comemos como matéria-prima. O ferro que ora forma nosso sangue era, anteriormente, por exemplo, feijão, mas antes compunha o solo, e antes o corpo de inúmeros outros seres vivos. Antes, ainda, era parte das rochas que formam o planeta Terra, que, por processos como a erosão, tornaram-se o solo. Se voltarmos mais no tempo, o material que formou as rochas/o planeta, vagava pelo Universo, advindo de estrelas anteriormente “mortas”. Retrocedendo, chegamos ao ponto inicial do Universo, sobre o qual possuímos hipóteses, modelos e mistério.

Mas, se, ao invés de retrocedermos, avançarmos no tempo, podemos conceber que o ferro que ora nos compõe será devolvido ao solo na forma de células mortas, fezes ou pela decomposição de nosso corpo. Poderá, então, formar o corpo de novos seres vivos. Ou seja, tudo o que forma nosso corpo já formou o corpo de incontáveis seres no passado e comporá o corpo de incontáveis seres no futuro. Somos, corporalmente, apenas um momento impermanente de certa ordenação do material do planeta. Nada nos pertence. Nada que forma o corpo de um “eu” é, de fato, posse de tal “eu”. Os corpos de todos os “eus” são formados completamente por elementos que não são tais “eus”. Um indivíduo pode até não reconhecer a si mesmo em um rio, na chuva ou em uma rocha, mas cem por cento de seu corpo é formado de água e outros elementos advindos, em grande parte, das rochas.

A reflexão feita com os estudantes pode ser resumida pela seguinte questão (ainda que não com os mesmos termos): após analisarmos atentamente nossos corpos, o que sobra como ego (eu) sobre o qual se pode centrar a cosmovisão de um ente?[8]

As aulas seguintes são dedicadas ao estudo sobre a origem e a evolução do planeta Terra, o que inclui, por exemplo, a Terra primitiva, a estrutura interna no planeta e os fenômenos ligados ao tectonismo/deriva continental. A partir dessas temáticas, que revelam como até a cara e as paisagens de nosso planeta se transformam ao longo do tempo geológico, discute-se a impermanência estrutural da realidade, questionando-se a impressão de uma realidade estática, perene, que formata diversas cosmovisões egocêntricas (é mais fácil colocar a si mesmo como monarca absoluto de um “território” definido do que de uma coleção de processos e fluxos impermanentes e sem substância própria fixa).

Em seguida, passa-se à última parte da sequência didática, que versa sobre a evolução das espécies. Sem adentrar, no curto espaço do presente ensaio, nos pormenores das mediações pertinentes a tal temática e trabalhadas em sala de aula, cabe expor que a compreensão da vida como evolução revela que nós, humanos, somos mais uma espécie dentre todas as demais, e, partilhando uma origem comum, somos primos de todas elas. Alguns detalhes cladísticos[9] são também trabalhados com os estudantes, levando a algumas conclusões deveras interessantes como a de que podemos entender os humanos (e todos os tetrápodes) como peixes transformados.

            A compreensão da vida como uma sequência evolutiva que parte do mesmo primeiro organismo, de modo que todos os seres vivos formam uma única família, contribui para a mudança de perspectiva almejada em relação ao modo como cada ente localiza a si mesmo em relação aos outros e ao todo (o mundo, a natureza). Nesse ponto da discussão, uma das faces do egocentrismo humano, o antropocentrismo[10], pode ser frontalmente questionada.

Há, portanto, a proposta de uma tomada de consciência ética que acompanha cada passo da sequência didática. Contudo, para que tal tomada de consciência se complete, é imprescindível que, além da reflexão inspirada pela identidade em relação ao mundo natural, identidade esta que nos aproxima e nos une ao mundo, que também se reflita por via da oposição, da diferença.

Ou seja, em nome de um aperfeiçoamento ético racionalmente embasado, é preciso que se perceba aquilo que podemos e devemos negar em nós, mesmo que advindo de nossa própria origem natural. Sem isso, a análise ficaria manca e o resultado do trabalho escolar poderia ser a geração de uma visão idealista e romântica sobre a natureza (algo não incomum nos meios ambientalistas e na educação), na qual nós, humanos, nos reconhecendo como partes da natureza, nos inseriríamos automaticamente em um modo de vida eticamente perfeito e inerentemente bom.

Tal trabalho de inserção consciente (que percebe identidades e diferenças) nas teias de relações naturais pode se dar, por exemplo, pela compreensão de que a “sobrevivência dos mais aptos”, base da teoria da evolução das espécies, se traduz, majoritariamente, como a manutenção das adaptações e mutações mais eficazes para a luta pela sobrevivência, seja a luta entre seres vivos, realçada pelo estudo das relações ecológicas desarmônicas (como canibalismo, competição, amensalismo, parasitismo e predatismo), seja a necessária e constante resistência em relação às dinâmicas ambientais (como chuva, vento, seca, fogo, terremotos, vulcões etc.[11]).

O estudo das cadeias e teias alimentares é outro exemplo de discussão que revela a brutalidade da vida natural, na qual se sobressai a busca pela própria sobrevivência em detrimento da vida dos demais seres. Tal brutalidade, estruturante das relações vitais, pode ser lida como um sofrimento constante inerente à própria experiência de existir. Quando tal compreensão é introjetada cognitivamente pelos sujeitos humanos, pode desempenhar um papel essencial na arquitetura íntima do modo como nos inserimos na teia de relações constituintes do que chamamos de mundo ou de natureza[12].

A ordem natural é a da busca pela própria sobrevivência a qualquer custo, algo que almejamos superar por via da reflexão ética. Somos naturais, mas, ao mesmo tempo, podemos transcender a natureza em nós, apontando para a possibilidade de uma obrigatória dimensão moral nos entes humanos.

Se fôssemos apenas seres naturais, a oposição a atos terríveis como roubo, escravidão, assassinato ou estupro não encontraria guarida. A manutenção da própria existência justificaria quaisquer práticas. Se buscamos moralidades e políticas nas quais a justiça e o sofrimento alheio nos importam, e não apenas a nossa própria sobrevivência e a obtenção de prazeres pessoais, é preciso que limitemos em nós diversos impulsos advindos de nossa natureza animal.

Em suma, se por um lado é preciso que nos percebamos como partes das relações naturais, em um movimento de reaproximação com a natureza e com nossa dimensão ecológica, por outro lado é preciso que, em nome de nosso aprimoramento ético, nos distanciemos da ordem natural (não da natureza, mas da lógica da natureza). Há, assim, uma via de mão dupla em nosso aprimoramento moral.

Vale apontar, ainda que muito brevemente, que essa linha de pensamento aponta para a necessidade de se refletir sobre o conceito atribuído à categoria “natureza”, discussão de grande importância para o pensamento geográfico nas últimas décadas. A comumente lecionada ideia de que nós, humanos, somos natureza, se lida a partir da proposta de duas vias morais aqui discutida, é convidada a se rever, especialmente ao considerarmos que a natureza é amoral, ou seja, toda a brutalidade que nós, humanos, podemos reconhecer na natureza, da alimentação dos animais, passando por tempestades e vulcões, chegando ao choque entre galáxias, acontece sem o crivo de uma reflexão moral prévia. Mas, se a natureza é amoral, nós, humanos, não o somos. O fato de que podemos e devemos fazer escolhas sobre a correção ou a incorreção de nossos atos nos torna seres morais. Somos capazes de sermos imorais, mas não somos amorais, como a natureza. Há, aí, uma enorme diferença[13].

Nesse aspecto, que ultrapassa a formação química de nossos corpos ou a evolução de nossa espécie a partir de espécies animais anteriores, somos algo diverso da natureza, o que questiona propostas como a de Carvalho[14] (2003, p.22), que diz que “a natureza sequer teria sido reconhecida enquanto alteridade [...] distinta da dos homens, se as relações sociais não tivessem conduzido historicamente a esta separação entre o ´mundo natural` e o ´mundo social`”, ou de Piccin (2006, p.4), que julga que foi apenas no “projeto de modernidade onde se construiu uma visão dualista da natureza e sociedade”.

Considerando as ideias acima apresentadas, será que a diferença entre sociedade e natureza é mesmo apenas uma construção social que poderia ser abandonada? Seria possível haver uma sociedade de humanos na qual imperasse completamente a amoralidade e a autossobrevivência a qualquer custo?

Se a resposta for negativa, saberemos que o ser humano possui algo que o separa da lógica natural, e, portanto, não podemos tentar encontrar solução para nossos problemas e injustiças sociais propondo apenas algum tipo de “retorno à natureza”. Os comportamentos mais violentos em nossa sociedade, como diversas formas de opressão, roubo, ódio à diferença, violência sexual, exploração dos demais para benefício próprio etc. são, em realidade, expressões ainda vigentes de nossa origem natural. São faces da luta pela manutenção da própria sobrevivência/maximização dos prazeres pessoais sem consideração moral sobre o sofrimento que tais ações geram aos demais entes. Desse ponto de vista, nossa pior face, talvez, seja a natureza resistente em nós.

O conceito de natureza precisa, assim, ser repensado por uma Geografia que pretende lidar com o encontro entre sociedade e natureza e com as consequências políticas de tal encontro.

Para a reflexão ambiental, vale refletir que não apenas oprimimos a natureza e seus entes (o que é um fato terrível), mas que o que em nós oprime a natureza é a própria natureza em nós.

Para a educação, vale a aposta de que é possível um trabalho que embase ambas as direções éticas apontadas - aquela que nos une à natureza e aquela que nos separa. Esperamos que a sequência didática aqui apresentada tenha, ao menos, tangenciado tal objetivo.

 

3 Considerações finais propositivas: em busca de uma educação cosmológica eticocêntrica

Na sequência didática acima apresentada, a complexidade da discussão ética e geográfica sobre o modo como participamos das redes de coexistências que formam a natureza se nutriu do conhecimento produzido e ensinado pelas Ciências da Natureza, reverberando as opiniões de Gonçalves (2006, p.38) de que “os geógrafos talvez tenham a chance de pensar em novas abordagens [sobre a] relação entre o físico e o humano” e de que “é necessário romper as barreiras da biologia não só para a química como também para as ciências sociais”. Tais relações, possíveis de serem realizadas nas escolas em um trabalho interdisciplinar, podem ajudar os estudantes a alterarem o modo como percebem seus lugares no mundo, suas cartografias pessoais, e isso pode, idealmente, reverberar em modificações de grande valor ético no modo como os membros de nossa sociedade se relacionam entre si e com as paisagens das quais fazem parte, o que ecoa também a posição de Morin (2005, p.11), para quem

A ciência deve reatar com a reflexão filosófica, como a filosofia, cujos moinhos giram vazios por não moer os grãos dos conhecimentos empíricos, deve reatar com as ciências. A ciência deve reatar com a consciência política e ética.

 

Em outras palavras, a sequência didática aqui descrita almejou estimular reposicionamentos nas cosmovisões de cada estudante por via do conhecimento, da imaginação e da reflexão lógica. Trata-se de uma fusão entre mente, conhecimento e mundo que merece receber alguns comentários, ainda que breves e sem os aprofundamentos necessários.

A sociedade é formada por indivíduos com cosmovisões diversas, o que faz com que vivam, ainda que em um mesmo mundo concreto, mundos diversos, com referências, valores, conceitos e linguagens diversas, além de responderem aos estímulos advindos do mundo (tanto do mundo concreto quanto do mundo mental) de maneiras diversas. São muitos mundos em um. Muitos túneis de realidade.

Quando observamos a maneira como o mundo, as sociedades ou as pessoas se organizam - suas espacialidades e temporalidades expressas em suas paisagens -, estamos nos atentando, em realidade, para a maneira como tais pessoas vivem “o mundo” a partir do modo como o percebem e o enchem de significados, transformando mentalmente a miríade incontável de fenômenos e processos percebidos em algo com certa ordenação passível de ser vivida: “um mundo”, e, aí, seus lugares nesse mundo (a espaço-temporalidade do mundo e seus lugares nessa espaço-temporalidade).

Viver um lugar passa por trazê-lo para o “interior da mente” (abstraí-lo). Tal experiência dada no interior da consciência depende do arcabouço de conhecimentos e reflexões prévias em tal mente e das emoções que a mente estiver experimentando no momento da percepção das paisagens. A partir desse encontro entre mente e mundo os lugares serão significados e a compreensão de suas espaço-temporalidades estabelecidas de modos diversos.

Em suma, pensar a espaço-temporalidade do mundo humano, de seus lugares, é pensar em estruturas mentais, perceptivas, cognitivas e de conhecimentos que geram certos comportamentos; é pensar em como modelamos o mundo com base em certos padrões mentais, desejos, sentimentos, apegos, aversões, preconceitos, ideias, gostos, crenças etc.

É impossível, portanto, do ponto de vista da experiência humana, separar nossas dimensões mentais e o mundo concreto em que vivemos. Não há um mundo concreto para nós sem o filtro da mente. Não há, ao menos em nossa experiência ordinária do mundo, mente humana que não seja atrelada a todos os diversos fenômenos externos aos quais possui alguma forma de contato direto ou indireto. Para nossa experiência[15], mente e mundo não são entidades independentes.

Tal impossibilidade de se determinar limites nítidos entre a mente e o mundo vivido, ou seja, entre mentes e lugares, representa uma tradução em linguagem geográfica da inseparabilidade entre sujeitos e objetos.

Modos de perceber e ordenar mentalmente o mundo percebido, ao moldarem o modo como entendemos o que é o mundo e nosso lugar nele, de certa forma criam nossos mundos e, assim, delineiam nossas possibilidades de olhá-los, percebê-los, sistematizá-los e vivê-los, ou seja, de modificar o mundo concretamente existente.

Ao perceber e sistematizar o que percebemos do mundo, o ordenamos. Essa é boa parte do trabalho das ciências, mas é também o modo como cada ser humano lida com o mundo percebido a todo instante. A educação, por sua vez, pode participar com bastante relevância do aprimoramento dos princípios e direções que moldam a maneira como cada pessoa ordena mentalmente seu mundo. No caso da sequência didática acima apresentada, o que está em jogo é, justamente, a ordem de nosso mundo, a ordenação de nossas referências espaciais e temporais.

A educação, assim entendida, possui um caráter cosmológico, pois diz respeito ao estudo (à razão, à expressão ordenada por via da linguagem) - logos - sobre a possibilidade de existência de certa ordenação - cosmos[16] - para a forma como entendemos e vivemos o mundo.

O presente ensaio trata, portanto, de uma proposta de educação com viés cosmológico - uma educação cosmológica. Ainda, considerando que o objetivo mais amplo da sequência didática acima apresentada é a reflexão de ordem ética (defendemos neste ensaio um trabalho escolar voltado para a possibilidade de uma cosmovisão centrada em objetivos éticos), pode-se conceituar que a educação aqui proposta visa o estabelecimento de uma cosmologia eticocêntrica.

Tal trabalho foi realizado a partir do ensino sistemático e planejado de conteúdos (no caso, comumente associados às Ciências da Natureza e/ou à Geografia), concatenados de forma que levassem os estudantes a repensarem seus próprios lugares no mundo e o modo como eles interagem com todos os demais entes - considerando que há, para a experiência humana, uma união entre mente e mundo. Assim, os conteúdos, o desenvolvimento de diversas habilidades cognitivas e os ideais éticos foram trabalhados de modo unificado. Essa união inseparável entre contemplação, conhecimento, cognição e virtude é, julgamos, um nobre ideal para o trabalho educacional[17].

Se almejamos mudanças no mundo concreto, é imprescindível que haja transformações no modo como nossas mentes operam. Tentar aprimorar nossas relações sociais e ambientais sem considerar esse fato é seguir apontando flechas para o breu, esperando milagrosamente que se acerte o alvo correto, sem que o arqueiro se perceba como parte do problema a ser resolvido - sem que veja que parte do alvo está em si mesmo.

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, 278p.

BECKER, Léia Spode; CASSOL, Roberto; RIZZATTI, Maurício. Cartografia Escolar e Inteligências Múltiplas. Curitiba: Appris, 2020, 137p.

CARVALHO, Marcos de. O que é Natureza. São Paulo: Brasiliense, 1999, 85p.

DAWKINS, Richard. Desvendando o Arco-Íris: ciência, ilusão e encantamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 424p.

GOMES, Paulo Cesar da Costa. Quadros Geográficos: uma forma de ver, uma forma de pensar. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2023, 158p.

GONÇALVES, Carlos Walter Porto. (Des)caminhos do Meio Ambiente. São Paulo: Contexto, 2006, 148p.

MASSEY, Doreen. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, 344p.

PICCIN, Marcos Botton. Notas Sobre o Ambientalismo, (Agro)ecologia, Ciência e Capitalismo. Anais do XLIV CONGRESSO DA SOBER. Rio de Janeiro, CPDA/UFRRJ, 2006. Disponível em: https://ageconsearch.umn.edu/record/148605/files/918.pdf. Acesso em 01 dez. 2023.

POSTMAN, Neil. O Fim da Educação: redefinindo o valor da escola. Rio de Janeiro: Graphia, 2002, 199p.

SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado Pelos Demônios. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006, 512p.

 


[1]  Esse tipo de indivíduo, nas palavras de Bauman (2001, p.49), ao relembrar Tocqueville, seria “o pior inimigo do cidadão”, considerando-se que “o ‘cidadão’ é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade - enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à ‘causa comum’, ao ‘bem comum’, à ‘boa sociedade’ ou à ‘sociedade justa’”.

[2] Habilidades como a concentração e a atenção e práticas como a contemplação e a meditação sobre fenômenos e ideias são de extrema relevância. A participação delas nos currículos escolares deve ser estudada com maior profundidade e interesse.

[3] Vê-se, assim, que um dos objetivos do ensino de Geografia deve ser a construção da habilidade de compreensão dos fenômenos como resultantes de relações que se dão nas mais variadas dimensões espaciais e temporais. Trata-se de uma visão complexa e relacional que demanda tanto um considerável arcabouço de conhecimentos quanto habilidades cognitivas necessárias para as relações entre eles. Em outras palavras, no contexto geográfico, o pensamento relacional e complexo se traduz como um pensamento inescapavelmente e radicalmente multiescalar, e essa é uma das belezas e das mais altas potencialidades do pensamento geográfico.

[4] O que corrobora a defesa de Sagan (2006, p.43), para quem “a ciência é mais do que um corpo de conhecimento, é um modo de pensar”.

[6] Esse apontamento foi feito por Carl Sagan, o que é exposto durante a aula.

[7] Disponível em: https://hubblesite.org/contents/articles/hubble-deep-fields. Acesso em: 10 nov. 2023.

[8] Vale comentar que a reflexão em sala de aula avalia também os conteúdos mentais de nossa individualidade, como memórias, desejos, sonhos, planos e percepções, atentando-se para o fato de que todos são impermanentes, transitórios e nem sempre com alto grau de confiabilidade, haja vista que as memórias são alteradas com o tempo, memórias, imaginação e sonhos se misturam, sonhos e planos mudam com o passar da vida, traços marcantes de personalidade e gostos pessoais muitas vezes são alterados em diferentes fases da vida e a própria percepção do momento presente é sempre parcial, fracionada e com interferências dos estados mentais momentâneos. Ou seja, o “eu” derivado na mente também não possui uma natureza sólida. Como então fazê-lo tão importante e grandioso ao ponto de elevá-lo ao centro e acima do mundo?

[9] Cladística é um método de classificação dos seres vivos baseado em suas histórias evolutivas.

[10] Apesar de isso não ter sido feito na sequência didática aqui apresentada, seria possível, como consequência da discussão sobre o antropocentrismo, discutir-se o especismo, ou seja, a forma de discriminação que julga que a espécie humana é superior às demais e que isso daria para ela o direito de tratá-las do modo como achar que convém para suprir seus próprios desejos ou interesses.

[11] Ou seja, dinâmicas recorrentemente trabalhadas no ensino de Geografia, como as climatológicas, as geológicas ou as geomorfológicas, não devem ser tratadas apenas como fenômenos abstratos cujo processo deve ser compreendido, mas como processos que se dão em um mundo concreto repleto de seres sencientes que, costumeiramente, os experienciam como fontes de perturbação e sofrimento. A Geografia Física, portanto, não está umbilicalmente unida apenas às dinâmicas envolvendo humanos concretos reveladas pela Geografia Humana (sem discutir sobre a real possibilidade de se realizar tal discriminação), mas também às dinâmicas envolvendo animais não-humanos, igualmente vitimados tanto pelas dinâmicas naturais quanto pelas alterações humanas nessas dinâmicas.

[12] Podem ocorrer, por exemplo, o aprofundamento de reflexões de ordem ética e o crescimento da compaixão.

[13] Tal diferença, acreditamos, não se enquadra na crítica de Gonçalves (2006, p.31) que aponta que a cultura ocidental advinda da filosofia clássica grega possuiria “certo desprezo ‘pelas pedras e pelas plantas’ e [...] um privilegiamento do homem e da idéia”. Nossa proposta possui duas vias, e força-nos a nos reconhecer como integrantes do mundo natural, ao mesmo tempo em que entende que a ética nos coloca em uma posição diversa dos demais membros da natureza. Não se trata de um desprezo pela natureza, mas da compreensão de que há certa forma de se posicionar no mundo, permitida pelo tipo de consciência que um ser humano pode ter, que o dá certa especificidade.

[14] Julgamos importante ressaltar que, muitíssimo além de certa discordância em relação ao trecho citado, tal autor, Marcos, como nosso professor na graduação, possuiu importantíssimo papel em nossa formação, não apenas apresentando as discussões sobre os possíveis conceitos de natureza (desnaturalizando o conceito), mas, principalmente, fomentando uma visão complexa e transdisciplinar que nos influencia até o presente momento, mais de vinte anos após suas aulas.

[15] Sinal dos tempos: é preciso afirmar que, para além de nossa experiência pessoal, independentemente de nós, o mundo concreto existe.

[16] “Cosmos”,  termo usado por Pitágoras para se referir ao mundo, significa “ordem”, algo ordenado.

[17] Isso nos une, ou ao menos nos instiga ao movimento de aproximação, com Humboldt, que propôs que “a contemplação deve ser fundada em um empirismo raisonné (raciocinado, pensado) composto dos fatos apresentados pelas ciências e ‘submetidos ao entendimento que compara e combina’” (GOMES, 2023, p.62), o que aproximava seu pensamento ao dos antigos estóicos, para os quais “o veículo do conhecimento é a contemplação, formada pela observação atenta da diversidade aliada ao arguto raciocínio que procura, por trás da aparente feição do caos, uma ordem cósmica” (IBIDEM, p.65). Aproxima-nos aos pressupostos estóicos, também, haja vista nossa preocupação em unir contemplação, conhecimento, cognição e ética, o fato de que  “[...] o estoicismo se pronuncia sobre três campos: o da física [natureza]. o da lógica e o da moral. A unidade entre eles é dada pela ordem racional, uma espécie de substância que reúne essas três esferas em um mesmo conjunto” (Ibidem, p.64).

Comentários