LITERATURA, ATENÇÃO E IMAGINAÇÃO: UM CAMINHO ÉTICO (TCC, 2025)
LITERATURA, ATENÇÃO E IMAGINAÇÃO: UM CAMINHO ÉTICO
RESUMO
Este trabalho investiga a relação entre literatura, atenção, imaginação
e ética, propondo que o contato profundo com obras literárias pode desempenhar
papel central na formação ética dos indivíduos. De natureza teórica e
articulando contribuições de autores de diferentes campos do saber, ele
argumenta que a literatura, ao expandir o horizonte da imaginação, possibilita
ao leitor vivenciar experiências diversas das suas próprias, ampliando a
capacidade de se colocar no lugar do outro e, assim, refinar seus julgamentos
morais. Argumenta-se também que a leitura exige atenção constante e pode
contribuir para o desenvolvimento de uma presença lúcida diante do mundo,
aspecto essencial para tomadas de decisão eticamente responsáveis. O trabalho
destaca ainda a complementaridade entre imaginação e atenção: enquanto a
primeira permite sair de si e viver o outro, a segunda ancora a percepção no
aqui e agora, fornecendo elementos mais precisos para a reflexão e a ação
moral. Defende-se, portanto, que a literatura, ao estimular simultaneamente
imaginação e atenção, favorece a formação de cosmovisões mais amplas e
conscientes, o que representa um caminho promissor para o desenvolvimento ético
individual e coletivo. Conclui-se que a educação, escolar ou não, deve incorporar
a literatura não apenas como disciplina estética, mas como instrumento ético e
cosmológico, capaz de enriquecer a experiência que possuímos do mundo e
contribuir para sociedades mais justas e respeitosas.
Palavras-chave: Literatura. Educação. Ética.
1. INTRODUÇÃO
Iniciemos com três afirmações:
a) A busca pelo aprimoramento ético acompanha a
humanidade, manifestada em diversos esforços filosóficos, religiosos, políticos
e artísticos;
b) A educação, mais do que uma forma de transmissão
de conteúdos, é - ainda que não exclusivamente - socialmente responsável pela
qualidade do comportamento das novas gerações de cidadãos, ou seja, pelo seu
aprimoramento ético;
c) A literatura é parte fundamental dos processos
educativos humanos, escolares ou não.
Posto isso, principiemos nossa
investigação do seguinte questionamento: de que modo a literatura pode
contribuir para a formação ética por meio do estímulo à imaginação e à atenção?
O presente estudo busca,
portanto, traçar conexões entre o desenvolvimento do ser humano leitor – ou, em
outras palavras, do contato profundo com a literatura – e o desenvolvimento
ético das personalidades pessoais.
Tal articulação parte da
hipótese de que a literatura não se limita a ser mera fonte de entretenimento,
mas constitui uma via privilegiada de formação da sensibilidade, da atenção e
da imaginação, dimensões fundamentais para o bom exercício de nossas habilidades
éticas.
Em suma, este trabalho, de
natureza teórica, busca refletir sobre como a literatura, ao estimular a
imaginação e a atenção, contribui para a formação ética do ser humano. O
objetivo é destacar a relevância da formação literária como eixo de processos
educativos que pretendam não apenas transmitir conhecimentos, mas também
promover modos de existência mais conscientes, justos e respeitosos.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1
METODOLOGIA
O presente
trabalho se caracteriza como uma pesquisa de natureza teórica realizada em
diálogo com as referências bibliográficas. Não se trata, portanto, de
investigação empírica ou experimental. A metodologia adotada se baseia na
leitura de autores selecionados, com o objetivo de embasar conceitualmente as
hipóteses iniciais e ampliar as possibilidades investigativas. A análise se
desenvolveu, assim, a partir da interpretação e da síntese dos referenciais
escolhidos, buscando construir uma reflexão articulada que permitisse
fundamentar as conclusões apresentadas.
2.2
DISCUSSÃO TEÓRICA
2.2.1
LITERATURA, IMAGINAÇÃO E ÉTICA
Partamos nossa análise de uma
instigante afirmação de Neil Postman (2002, p.108-111) sobre a Astronomia:
quando se trata de temor reverencial, não há nada que se compare com a
astronomia”. [...] Seu estudo inevitavelmente suscita perguntas fundamentais
sobre nós mesmos e nossa missão. [...] A Astronomia oferece confirmação de uma
ideia intuitiva expressa ao longo dos séculos por pessoas de diferentes
culturas. Heráclito escreveu que todas as coisas são uma só. Lao-tzé disse que
todas as coisas são reguladas por um único princípio. O cacique de Seattle da
comunidade suquamish declarou que todas as coisas estão conectadas. [...] A
astronomia, portanto, é uma disciplina chave se desejamos cultivar em nossos
jovens um senso de temor reverencial, interdependência e responsabilidade
global.
Tal autor buscava apontar
como a educação poderia ampliar os horizontes cognitivos e éticos dos
estudantes. O senso de grandiosidade e interconexão existencial apresentado
pelo estudo da Astronomia cumpriria, com êxito, tal papel.
O estudo da Astronomia,
portanto, estimularia sensibilidades e ampliaria horizontes, o que poderia
gerar consequências de ordem ética nos sujeitos por ela afetados.
Esse alargamento existencial
proporcionado pela Astronomia, não é, contudo, restrito às ciências e suas
incríveis narrativas sobre o cosmos e o desconhecido. Por excelência, a
literatura, seja na forma de prosa ou de poesia, poderia ser entendida de tal forma,
dado que
A literatura contempla
e extrapola limites
da experiência do
viver, daí seu caráter
alteritário, capaz de
contemplar a multiplicidade e a polissemia das
vozes que habitam a
esfera cotidiana. [...] Assim
concebida, a literatura
alarga a experiência
de viver, de entrar e estar em relação, de escutar a si mesmo e ao outro
(SALUTTO, 2019, p.116).
É possível sugerir que esse
alargamento da experiência do viver poderia nos inserir de modo mais complexo,
amplo e nuançado nas redes espaço-temporais que formam nossa existência, e esse
ato possui uma enorme relevância ética.
Uma forma de entender tal
correlação é que, para que possamos tomar boas decisões de ordem ética, é
essencial que consigamos nos colocar no lugar dos outros. Para realizarmos tal
movimento, que se expressa como um “sair de nós mesmos”, ajuda-nos a diversidade
de experiências prévias acumuladas pelo sujeito agente de certa ação, pois elas
facilitam o processo de se tentar entender o que pode se passar com a
alteridade ao ser afetada por certos atos ou circunstâncias.
Contudo, nossas experiências
de vida – mesmo que bem captadas por uma atenção bem desenvolvida – são
limitadas. O número de experiências pelas quais realmente passamos é pequeno
diante da imensa variedade de experiências vividas que formam o mundo humano.
Sendo assim, formas variadas de contato com experiências alheias, para além de
nossas experiências diretas, são de grande valor.
A literatura cumpre com
maestria tal papel. A partir do contato com obras literárias podemos viver
dramas alheios a nós, entrar na pele de outras pessoas, viver outros lugares.
Por via do trabalho com nossa imaginação, os livros podem, portanto, expandir
nossas existências para além de nossos limites corporais e espaciais.
Nesse espírito, Bachelard
(2009, p.8) afirma que:
Certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a nossa
vida [...]. Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que é nosso mundo. E
esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento do nosso ser
nesse universo que é o nosso.
O mundo vivido de cada
sujeito, imerso em certa cultura, limita seus julgamentos morais. Assim, faz-se
lógico propor que ao ampliar o mundo vivido, tanto por via das próprias
experiências, quanto por via da experiência de personagens de obras de arte, abre-se
um campo de reavaliações morais capazes de impulsionar aprimoramentos éticos.
Esse estímulo à imaginação,
se bem processado, refinaria, portanto, a percepção que cada pessoa possui
sobre seu próprio mundo vivido. O abstrato, assim, reconfiguraria a relação com
a concretude, modificando-a.
Assim, tal ampliação do ser
pela literatura permitiria que nos relacionássemos com a alteridade, com a
diversidade, com a complexidade da existência de forma mais consciente e
plural, o que possui um profundo sentido ético.
Em suma, uma das
consequências possíveis do estímulo da imaginação - fruto natural do contato
íntimo com a literatura - é, assim, a ampliação do mundo mental das pessoas,
algo de extrema importância para o aprimoramento de nossas relações com
questões éticas, para as quais é imprescindível ter a capacidade de se colocar
no lugar do outro.
Vale apontar que uma forma de
entender nossa vida - algo que a aproxima da arte - é como um drama. Nossa
história de vida é como a vivência de uma trama, com todos os seus incontáveis
fios tecidos nas mais variadas direções, vindos das mais variadas localidades,
entrecruzados com os mais variados nós (o próprio termo “trama” vem do mundo
têxtil, assim como “texto").
Assim, o contato com outros
dramas, a conexão de nossas tramas pessoais com tramas outrora aparentemente
alheias, expandiria e enriqueceria nossa própria trama. Esse movimento de
costura de tramas - de vidas -, que alarga nosso ser, tornaria nossa experiência
de vida mais rica, convidando-nos ao caminho da sabedoria, dado que tal
alargamento do ser pode embasar entrelaçamentos mais conscientes, atenciosos,
compassivos e responsáveis, dado que será possível entender melhor os dramas
alheios e se possuirá mais repertório para averiguar melhor nossos próprios
atos.
O contato atento com uma arte
como a literatura pode, portanto, tornar nossa experiência do mundo mais rica e
profunda, ajudar no aprimoramento de nossas maneiras de perceber, significar e
vivenciar o mundo (aprimorar cosmovisões) e diminuir embotamentos perceptivos -
elementos fundamentais para nosso aprimoramento ético.
Esse processo deve ser
realizado desde a infância, dado que “a literatura possibilita para as crianças
comunicação mais clara e transparente, levando em consideração que quanto mais
leitura a criança fizer, maior o repertório de palavras, maior a facilidade na
comunicação com o outro” (OLIVEIRA; SILVA; SILVA, 2023, p.19). Esses
repertórios, tanto de palavras quanto de habilidade no contato com a
alteridade, é essencial para o aprimoramento ético supracitado.
Em outras palavras,
A leitura vai auxiliar a criança na sua forma de ver o mundo, ao contar
uma história é possibilitado a criança a pensar o cenário, a situação, os
personagens, a fala e através das características da história que a criança
pode construir seu perfil de leitor que se torna importante pois,
consequentemente, vai reverberar no seu crescimento e a maturação emoções e
sensações. (OLIVEIRA; SILVA; SILVA, 2023, p.21).
Bachelard (1993, p.7)
contribui ainda mais para o debate aqui apresentado ao refletir sobre as
relações que nos são possíveis com poemas ao apresentar os conceitos de
“ressonância” e “repercussão”:
A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o
nosso ser [...]. Dito de maneira mais simples, trata-se aqui de uma impressão
bastante conhecida de todo leitor apaixonado por poemas: o poema nos toma por
inteiro [...]. É como se, com sua exuberância, o poema reanimasse as
profundezas do nosso ser.
[...]
As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no
mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria
existência.
Por via da ressonância e da
repercussão que imagens poéticas podem gerar no leitor, podemos, portanto,
viver experiências poéticas através da escrita de outra pessoa. A poesia de
outrem soa novamente em nós – ressoa -, ouvimos o poema, e então podemos repercuti-lo
como se ele partisse agora de nós.
As ideias de repercussão e
ressonância em Gaston Bachelard apontam para a possibilidade da literatura
gerar alargamentos existenciais no leitor. Em uma espécie de amálgama entre
escritor e leitor, um bom poema possibilita transformações nos fundamentos da
experiência do mundo, ou seja,
transformações cosmológicas. Pela poesia - e nada impede que se expanda
tal percepção para a prosa - podemos nos transformar profundamente, inclusive
no modo como percebemos, significamos, representamos e habitamos o mundo, os
lugares, nós mesmos.
Ainda, vale apontar que:
A literatura pode ser a arena possível para enfrentar temas pungentes e
atuais da cultura. Por sua
capacidade de reunir
e fazer conviver
diferentes vozes, por
sua diversidade e capacidade dialógica pode acolher o debate das
diferenças, da tolerância, daquilo
que inibe, que
assombra, que rechaça.
A literatura pode
ser acolhimento quando, na
voz do outro, encontra-se eco do que
provoca e não
se tem coragem
de proferir em voz alta. (SALUTTO, 2019, p. 125).
Não seria sem sentido propor,
nesse âmbito, que, se bem habitar o mundo é estar nele da maneira mais plena
possível, cada esforço, insight ou
atitude que nos faz estarmos mais conscientes no mundo aumentaria nossa
capacidade de habitá-lo. Por via da literatura, se concordarmos com Bachelard e
com Salutto, podemos ampliar tal capacidade.
Assim
sendo, o contato profundo com a literatura, seja com a poesia ou com a prosa,
poderia ser de grande valia para um processo educativo (escolar ou não)
preocupado com o surgimento de cosmovisões saudáveis, justas, respeitosas e
aptas à coexistência, ou seja, um processo educativo voltado para o
aprimoramento ético da humanidade.
2.2.2
LITERATURA, ATENÇÃO E ÉTICA
Até o presente momento,
refletimos sobre a relevância ética do alargamento do ser por via da literatura
e de seu estímulo à imaginação.
Contudo, as experiências
corriqueiras do cotidiano demandam mais de nós do que referências imaginativas
que nos deem a capacidade de interpretar as situações do modo mais complexo e
nuançado possível - algo, como já discutido, trazido a nós pelo contato com a
literatura. Se estivermos distraídos, toda a bagagem imaginativa poderá não
passar de elementos difusos em uma mente dispersa.
Para iniciar este ponto de
nossa investigação - a relação entre ética, atenção e literatura -,
consideremos o que afirma Sam Harris (2013, p.66):
[...] considerações morais se traduzem em fatos sobre como nossos
pensamentos e ações afetam o bem-estar de criaturas conscientes, como nós
mesmos. Se existem fatos a serem descobertos sobre o bem-estar de tais
criaturas — e há —, então deve haver também respostas certas e erradas a
perguntas de cunho moral.
Ou seja, para que
desenvolvamos qualitativamente nossos juízos de ordem ética, faz-se necessário
que obtenhamos “fatos” sobre o modo como nossos pensamentos e nossas ações
afetam o bem-estar das criaturas conscientes que compartilham suas existência
no planeta conosco.
Essa obtenção de fatos
demanda um olhar para a realidade empírica apto a perceber com acurácia seus
detalhes e nuances, ou seja, demanda a habilidade da atenção.
Códigos morais, ou mesmo boas
intenções, por melhor que sejam, nunca darão conta de todas as situações da
vida e não gerarão atos eticamente aceitáveis se o usuário de um código moral,
mesmo desejando o bem, o belo e o justo, não estiver atento para bem aplicá-lo
quando for a situação adequada.
Devemos ser capazes de, na
velocidade da vida real, tomarmos as melhores decisões possíveis, que, muitas
vezes, incluem termos que rapidamente pesar diversas variáveis. É preciso,
então, que estejamos atentos.
Vale investigar, portanto, a
possibilidade de que o contato com obras literárias, além de desenvolver nossa
imaginação, como trabalhado anteriormente neste artigo, também possa reforçar
nossa atenção, o que apontaria, mais uma vez, para a importância da formação
literária para o desenvolvimento ético da humanidade.
Uma primeira linha
investigativa seria que o próprio ato de ler demanda e estimula a atenção, ao
requerer foco e presença do leitor de forma contínua e sistemática. Apenas a
execução constante de tal prática, a leitura, já poderia ser entendida como um
exercício de desenvolvimento da atenção, dado que “a leitura literária [...] costuma estar vinculada a um exercício
principalmente individual, autocentrado e solitário, que demanda atenção,
esforço e concentração” (CECHINELI, 2019, p.4).
Contudo, para além da atenção
ela mesma, habilidade desenvolvida pelo exercício da leitura, desejamos apontar
a possibilidade de que os poemas chamados de haikais, poderiam induzir, dada sua forma e conteúdo, o esforço
para uma atenção mais plena à concretude da experiência direta do mundo.
Na tradição Zen-budista
japonesa, o cultivo da presença lúcida e atenta inspirou práticas dedicadas a
se estar plenamente no momento presente, como a cerimônia do chá. Outra prática
derivada de tal arcabouço cultural foi o haikai,
poesia breve que valoriza a simplicidade e a percepção direta do instante.
“Um haikai
(ou hai-kai ou haicai) é um poema conciso, que aborda temas simples,
frequentemente ligados à natureza, com economia verbal e objetividade”
(NUNES, 2019, p.124). Em apenas três versos, um haikai captura um momento em palavras, sem julgamentos, sem
comentários: apenas a percepção atenta de um momento, de um lugar, como neste
clássico exemplo do grande poeta Matsuó Bashô (2008, p.11), que viveu no século XVII:
Velho lago
Mergulha a rã
Fragor d´água
Trata-se da captação direta
de uma imagem poética, o que é um exemplar exercício de fusão entre pessoa e
lugar, entre mente e mundo, que tende a tornar nossa experiência de mundo mais
viva, seja por um período de tempo ou por um instante.
Tal esforço de trazer a mente
para o momento presente e “apenas captá-lo” pode ser entendido como uma nobre e
efetiva forma de desenvolvimento de nossa atenção. Assim, o contato sistemático
com haikais, parece-nos,
direciona-nos para uma presença lúcida e atenta, algo necessário para a
tentativa de se realizar a melhor ação possível em cada situação e, portanto,
algo essencial para a ética.
2.2.3
AMÁLGAMA ATENÇÃO-IMAGINAÇÃO
Vimos que é preciso que se
esteja atento. Isso nos centra no mundo, conectando-nos profundamente à
existência concreta.
Contudo, também vimos que é
preciso saber viver a complexidade de um mundo fundamentalmente múltiplo,
diverso e relacional: é preciso sair do centro do mundo. A imaginação pode nos
levar para fora de nós mesmos, conectando-nos profundamente à natureza complexa
da existência.
A imaginação nos amplia, a atenção nos
centra. Ao mesmo tempo, a atenção permite que percebamos elementos mais
robustos para que tenhamos processos imaginativos mais robustos, e a imaginação
permite que direcionemos nossa atenção para elementos antes ocultos.
Esse duplo movimento, da centração no mundo
vivido e da ampliação do mundo vivido, revela um amálgama entre atenção e
imaginação que alarga o ser e o aprofunda: alarga-o horizontalmente e
verticalmente.
Devemos perceber as coisas
como elas são e organizá-las logicamente, racionalmente, de modo a gerar ações
moralmente dignas que dialoguem com o mundo realmente existente. Se assim não
for - como quando, por exemplo, segue-se cegamente algum código moral de uma
tradição ou ideologia - abre-se espaço para existências de natureza absurda,
nas quais se pode ser imoral em nome de certa moralidade pré-estabelecida,
mascarando-se a realidade com as cores e os tentáculos de certa visão de mundo
pré-determinada, fazendo com que nos percamos enredados em redes linguísticas e
conceituais que suplantam o mundo, e o mundo se perde, soterrado por nossas
toneladas de pseudoverdades, vaidade e hipocrisia.
Dado que a atenção nos
conecta ao mundo concretamente, corporalmente e materialmente existente, o
desenvolvimento da habilidade da atenção é algo de extrema importância para que
possamos viver nossos mundos pessoais e o mundo coletivo concretamente existente
de forma consciente e moralmente aceitável.
Como desenvolver relações
dignas com os demais entes do mundo se nem percebemos com alguma acurácia os
envolvidos nessas relações, se não percebemos os outros e suas necessidades (às
vezes, nem mesmo suas presenças)?
Como apontado anteriormente,
para agirmos da melhor forma possível, não basta decorarmos um código de
conduta. Mesmo que ele seja bom, sem atenção e racionalidade, não se saberá
quando e como aplicá-lo. Devemos ser capazes de, racionalmente, tentar tomar a
melhor decisão possível a cada nova situação. Para que isso ocorra, é
imprescindível percebê-la com nitidez e reconhecer seus detalhes e sutilezas.
O aprimoramento ético de
nossas cosmovisões e de nossa sociedade requer, então, o aprimoramento de nossa
habilidade de estarmos atentos.
Contudo, a atenção não é
suficiente. Se a atenção nos permite experienciar o mundo de forma mais plena,
a imaginação nos permite ampliá-lo. Se a atenção nos permite perceber melhor as
paisagens, a imaginação nos permite melhor interpretá-las. Se a atenção nos
permite perceber melhor as coisas como são no momento presente, a imaginação
nos permite perceber o que está além, nos colocar no lugar daquilo que não
captamos diretamente pelos sentidos, como o que se passa na experiência de
outro ente que não nós ou qual pode ser a consequência futura de um ato
presente.
A atenção aprofunda-nos no
aqui e no agora. A imaginação nos permite irmos além, para o ali, para o ontem
e para o amanhã, e é preciso sabermos viver o eu e o outro, o instante e a
eternidade. A atenção nos permite imaginar com mais profundidade, nos alimenta
de elementos para tal, assim como a imaginação aumenta a quantidade de
elementos para os quais podemos nos atentar.
Em suma, atenção e imaginação
são, portanto, habilidades complementares.
Para aprofundar a consciência
que possuímos sobre “o mundo”, sobre os lugares, é imprescindível não apenas
estarmos atentos (podermos perceber os fenômenos/relações com acuidade), mas
também podermos conjecturar para além da paisagem imediata e conseguirmos, de
alguma forma, nos colocarmos no lugar da alteridade, conseguirmos ver a nós
mesmos fora do centro do mundo no qual nossa percepção é central. Tais esforços
são de princípio imaginativo.
O contato com a literatura e
sua habilidade estrutural e fundante tanto de representar cenários em tempos e
espaços diversos, quanto de traduzir as experiências existenciais ocorridas em
tais tempos e espaços, ao estimular em nós, conjuntamente, a atenção e a
imaginação, é, assim, essencial para o desenvolvimento ético do ser humano, tal
como exposto, ainda que brevemente, no presente trabalho.
3. CONCLUSÃO
A vida em sociedade exige de
cada indivíduo a capacidade de reconhecer a alteridade, de perceber o outro em
sua complexidade e de refletir sobre as consequências de seus atos. Contudo,
nossas experiências concretas de vida são limitadas, e a diversidade de
perspectivas a que temos acesso é reduzida em comparação à vastidão das
experiências humanas. Nesse sentido, a literatura apresenta-se como uma via de
ampliação da consciência, permitindo-nos viver outras vidas, ocupar outros
lugares e compreender dramas que não nos pertencem diretamente.
Ao mesmo tempo, a leitura,
enquanto prática contínua, demanda atenção. Em um mundo cada vez mais marcado
pela dispersão e pela aceleração, o ato de se concentrar em um texto literário
se configura como um exercício privilegiado de presença, capaz de refinar a
percepção do real. Imaginamos melhor quando estamos atentos, e prestamos
atenção melhor e para mais detalhes quando nossa imaginação é fértil. Tais
habilidades, entrelaçadas, podem fundamentar escolhas mais lúcidas e ações mais
responsáveis.
A imaginação e a atenção
podem ser vistas, portanto, como fundamentais para um bom processo educativo,
na medida em que podem levar o ente a novas percepções, a novas estruturações
mentais e a insights transformadores
de cosmovisões.
Tornarmo-nos mais atentos é
talvez a tarefa mais importante que devemos assumir para melhorarmos a nós
mesmos e ao mundo que nos rodeia. Sermos capazes de bem imaginar, aprimora tal
esforço.
A educação, escolar ou não,
precisa ter estes pressupostos em seus fundamentos. Todas as formas de
conhecimento devem nos ajudar na tarefa de melhor conhecer ao mundo, aos outros
e a nós mesmos para que possamos aprimorar nossa habilidade de respeitar, o que
faz com que toda forma de conhecimento deva nos ajudar em nosso aprimoramento
ético. Ou seja, a educação deve possuir um caráter cosmológico e uma forte
ancoragem ética, sendo uma porta para o aprimoramento dos indivíduos e da
sociedade.
A literatura, mais do que uma forma de distração, pode ser compreendida como um pilar fundamental dessa forma de se compreender esse processo educativo capaz de contribuir para a formação de indivíduos mais atentos ao mundo empírico, sensíveis à alteridade e capazes de construir cosmovisões mais amplas, complexas, nuançadas, críticas e respeitosas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston. A Poética do
Devaneio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
BACHELARD, Gaston. A Poética do
Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
BASHÔ, Matsuo. Trilha Estreita ao
Confim. São Paulo: Iluminuras, 2008.
CECHINELI,
André. Literatura e atenção: notas
sobre um novo regime de percepção no
ensino de literatura. Revista Brasileira de Educação, v. 24. Rio de Janeiro:
ANPEd, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/3qRT4dPv5Mrkf7wp3vyNggr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em:
06 jul. 2025.
HARRIS, Sam. A Paisagem Moral:
como a ciência pode determinar os valores humanos. São Paulo: Companhia das
Letras, 2013.
NUNES, Roberson de Sousa. Do
Haikai Japonês ao Haicai Brasileiro: interpretação e performance. HON NO
MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses, v. 4, n. 7. Manaus: UFAM, 2019,
p. 123-132. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/38841/2/Do%20haikai%20japon%C3%AAs%20ao%20haicai%20brasileiro_interpreta%C3%A7%C3%A3o%20e%20performance.pdf. Acesso em: 03 ago. 2025.
OLIVEIRA, Karen Yasmim Alves; SILVA, Naianne Costa da; SILVA; Meiry
Fernandes da. A Importância da Leitura
para o Desenvolvimento Cognitivo e Social da Criança. Revista Communitas,
v. 7, n. 16. Rio Branco: UFAC, 2023, p. 18-28. Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.php/COMMUNITAS/article/view/7122/4341. Acesso em: 01 ago. 2025.
POSTMAN,
Neil. O Fim da Educação: redefinindo
o valor da escola. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
SALUTTO,
Nazareth. Literatura, ética e
alteridade. Seis proposições para a formação do leitor. FronteiraZ (Revista
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da
PUC-SP), n. 22. São Paulo: PUC-SP, 2019,
p.114-130. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/37425/28983. Acesso em: 13 jul. 2025.
Comentários
Postar um comentário