LITERATURA, ATENÇÃO E IMAGINAÇÃO: UM CAMINHO ÉTICO (TCC, 2025)


LITERATURA, ATENÇÃO E IMAGINAÇÃO: UM CAMINHO ÉTICO


Dennis Zagha Bluwol
TCC apresentado para a obtenção do título de licenciado em Letras Português/Inglês pela Faculdade Campos Elíseos - FCE

 

RESUMO

Este trabalho investiga a relação entre literatura, atenção, imaginação e ética, propondo que o contato profundo com obras literárias pode desempenhar papel central na formação ética dos indivíduos. De natureza teórica e articulando contribuições de autores de diferentes campos do saber, ele argumenta que a literatura, ao expandir o horizonte da imaginação, possibilita ao leitor vivenciar experiências diversas das suas próprias, ampliando a capacidade de se colocar no lugar do outro e, assim, refinar seus julgamentos morais. Argumenta-se também que a leitura exige atenção constante e pode contribuir para o desenvolvimento de uma presença lúcida diante do mundo, aspecto essencial para tomadas de decisão eticamente responsáveis. O trabalho destaca ainda a complementaridade entre imaginação e atenção: enquanto a primeira permite sair de si e viver o outro, a segunda ancora a percepção no aqui e agora, fornecendo elementos mais precisos para a reflexão e a ação moral. Defende-se, portanto, que a literatura, ao estimular simultaneamente imaginação e atenção, favorece a formação de cosmovisões mais amplas e conscientes, o que representa um caminho promissor para o desenvolvimento ético individual e coletivo. Conclui-se que a educação, escolar ou não, deve incorporar a literatura não apenas como disciplina estética, mas como instrumento ético e cosmológico, capaz de enriquecer a experiência que possuímos do mundo e contribuir para sociedades mais justas e respeitosas.

 

Palavras-chave: Literatura. Educação. Ética.

 

1.    INTRODUÇÃO

Iniciemos com três afirmações:

a)   A busca pelo aprimoramento ético acompanha a humanidade, manifestada em diversos esforços filosóficos, religiosos, políticos e artísticos;

b)   A educação, mais do que uma forma de transmissão de conteúdos, é - ainda que não exclusivamente - socialmente responsável pela qualidade do comportamento das novas gerações de cidadãos, ou seja, pelo seu aprimoramento ético;

c)   A literatura é parte fundamental dos processos educativos humanos, escolares ou não.

 

Posto isso, principiemos nossa investigação do seguinte questionamento: de que modo a literatura pode contribuir para a formação ética por meio do estímulo à imaginação e à atenção?

O presente estudo busca, portanto, traçar conexões entre o desenvolvimento do ser humano leitor – ou, em outras palavras, do contato profundo com a literatura – e o desenvolvimento ético das personalidades pessoais.

Tal articulação parte da hipótese de que a literatura não se limita a ser mera fonte de entretenimento, mas constitui uma via privilegiada de formação da sensibilidade, da atenção e da imaginação, dimensões fundamentais para o bom exercício de nossas habilidades éticas.

Em suma, este trabalho, de natureza teórica, busca refletir sobre como a literatura, ao estimular a imaginação e a atenção, contribui para a formação ética do ser humano. O objetivo é destacar a relevância da formação literária como eixo de processos educativos que pretendam não apenas transmitir conhecimentos, mas também promover modos de existência mais conscientes, justos e respeitosos.

 

2.    DESENVOLVIMENTO

2.1 METODOLOGIA

O presente trabalho se caracteriza como uma pesquisa de natureza teórica realizada em diálogo com as referências bibliográficas. Não se trata, portanto, de investigação empírica ou experimental. A metodologia adotada se baseia na leitura de autores selecionados, com o objetivo de embasar conceitualmente as hipóteses iniciais e ampliar as possibilidades investigativas. A análise se desenvolveu, assim, a partir da interpretação e da síntese dos referenciais escolhidos, buscando construir uma reflexão articulada que permitisse fundamentar as conclusões apresentadas.

 

2.2 DISCUSSÃO TEÓRICA

2.2.1 LITERATURA, IMAGINAÇÃO E ÉTICA

Partamos nossa análise de uma instigante afirmação de Neil Postman (2002, p.108-111) sobre a Astronomia:

 

quando se trata de temor reverencial, não há nada que se compare com a astronomia”. [...] Seu estudo inevitavelmente suscita perguntas fundamentais sobre nós mesmos e nossa missão. [...] A Astronomia oferece confirmação de uma ideia intuitiva expressa ao longo dos séculos por pessoas de diferentes culturas. Heráclito escreveu que todas as coisas são uma só. Lao-tzé disse que todas as coisas são reguladas por um único princípio. O cacique de Seattle da comunidade suquamish declarou que todas as coisas estão conectadas. [...] A astronomia, portanto, é uma disciplina chave se desejamos cultivar em nossos jovens um senso de temor reverencial, interdependência e responsabilidade global.

 

Tal autor buscava apontar como a educação poderia ampliar os horizontes cognitivos e éticos dos estudantes. O senso de grandiosidade e interconexão existencial apresentado pelo estudo da Astronomia cumpriria, com êxito, tal papel.

O estudo da Astronomia, portanto, estimularia sensibilidades e ampliaria horizontes, o que poderia gerar consequências de ordem ética nos sujeitos por ela afetados.

Esse alargamento existencial proporcionado pela Astronomia, não é, contudo, restrito às ciências e suas incríveis narrativas sobre o cosmos e o desconhecido. Por excelência, a literatura, seja na forma de prosa ou de poesia, poderia ser entendida de tal forma, dado que

A  literatura  contempla  e  extrapola  limites  da  experiência  do  viver,  daí  seu caráter  alteritário,  capaz  de  contemplar  a  multiplicidade  e a polissemia  das  vozes  que habitam  a  esfera  cotidiana.  [...] Assim  concebida,  a  literatura  alarga  a  experiência  de viver, de entrar e estar em relação, de escutar a si mesmo e ao outro (SALUTTO, 2019, p.116).

 

É possível sugerir que esse alargamento da experiência do viver poderia nos inserir de modo mais complexo, amplo e nuançado nas redes espaço-temporais que formam nossa existência, e esse ato possui uma enorme relevância ética.

Uma forma de entender tal correlação é que, para que possamos tomar boas decisões de ordem ética, é essencial que consigamos nos colocar no lugar dos outros. Para realizarmos tal movimento, que se expressa como um “sair de nós mesmos”, ajuda-nos a diversidade de experiências prévias acumuladas pelo sujeito agente de certa ação, pois elas facilitam o processo de se tentar entender o que pode se passar com a alteridade ao ser afetada por certos atos ou circunstâncias.

Contudo, nossas experiências de vida – mesmo que bem captadas por uma atenção bem desenvolvida – são limitadas. O número de experiências pelas quais realmente passamos é pequeno diante da imensa variedade de experiências vividas que formam o mundo humano. Sendo assim, formas variadas de contato com experiências alheias, para além de nossas experiências diretas, são de grande valor.

A literatura cumpre com maestria tal papel. A partir do contato com obras literárias podemos viver dramas alheios a nós, entrar na pele de outras pessoas, viver outros lugares. Por via do trabalho com nossa imaginação, os livros podem, portanto, expandir nossas existências para além de nossos limites corporais e espaciais.

Nesse espírito, Bachelard (2009, p.8) afirma que:

Certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que alargam a nossa vida [...]. Um mundo se forma no nosso devaneio, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado ensina-nos possibilidades de engrandecimento do nosso ser nesse universo que é o nosso.

 

O mundo vivido de cada sujeito, imerso em certa cultura, limita seus julgamentos morais. Assim, faz-se lógico propor que ao ampliar o mundo vivido, tanto por via das próprias experiências, quanto por via da experiência de personagens de obras de arte, abre-se um campo de reavaliações morais capazes de impulsionar aprimoramentos éticos.

Esse estímulo à imaginação, se bem processado, refinaria, portanto, a percepção que cada pessoa possui sobre seu próprio mundo vivido. O abstrato, assim, reconfiguraria a relação com a concretude, modificando-a.

Assim, tal ampliação do ser pela literatura permitiria que nos relacionássemos com a alteridade, com a diversidade, com a complexidade da existência de forma mais consciente e plural, o que possui um profundo sentido ético.

Em suma, uma das consequências possíveis do estímulo da imaginação - fruto natural do contato íntimo com a literatura - é, assim, a ampliação do mundo mental das pessoas, algo de extrema importância para o aprimoramento de nossas relações com questões éticas, para as quais é imprescindível ter a capacidade de se colocar no lugar do outro.

Vale apontar que uma forma de entender nossa vida - algo que a aproxima da arte - é como um drama. Nossa história de vida é como a vivência de uma trama, com todos os seus incontáveis fios tecidos nas mais variadas direções, vindos das mais variadas localidades, entrecruzados com os mais variados nós (o próprio termo “trama” vem do mundo têxtil, assim como “texto").

Assim, o contato com outros dramas, a conexão de nossas tramas pessoais com tramas outrora aparentemente alheias, expandiria e enriqueceria nossa própria trama. Esse movimento de costura de tramas - de vidas -, que alarga nosso ser, tornaria nossa experiência de vida mais rica, convidando-nos ao caminho da sabedoria, dado que tal alargamento do ser pode embasar entrelaçamentos mais conscientes, atenciosos, compassivos e responsáveis, dado que será possível entender melhor os dramas alheios e se possuirá mais repertório para averiguar melhor nossos próprios atos.

O contato atento com uma arte como a literatura pode, portanto, tornar nossa experiência do mundo mais rica e profunda, ajudar no aprimoramento de nossas maneiras de perceber, significar e vivenciar o mundo (aprimorar cosmovisões) e diminuir embotamentos perceptivos - elementos fundamentais para nosso aprimoramento ético.

Esse processo deve ser realizado desde a infância, dado que  “a literatura possibilita para as crianças comunicação mais clara e transparente, levando em consideração que quanto mais leitura a criança fizer, maior o repertório de palavras, maior a facilidade na comunicação com o outro” (OLIVEIRA; SILVA; SILVA, 2023, p.19). Esses repertórios, tanto de palavras quanto de habilidade no contato com a alteridade, é essencial para o aprimoramento ético supracitado.

Em outras palavras,

A leitura vai auxiliar a criança na sua forma de ver o mundo, ao contar uma história é possibilitado a criança a pensar o cenário, a situação, os personagens, a fala e através das características da história que a criança pode construir seu perfil de leitor que se torna importante pois, consequentemente, vai reverberar no seu crescimento e a maturação emoções e sensações. (OLIVEIRA; SILVA; SILVA, 2023, p.21).

 

Bachelard (1993, p.7) contribui ainda mais para o debate aqui apresentado ao refletir sobre as relações que nos são possíveis com poemas ao apresentar os conceitos de “ressonância” e “repercussão”:

A repercussão opera uma inversão do ser. Parece que o ser do poeta é o nosso ser [...]. Dito de maneira mais simples, trata-se aqui de uma impressão bastante conhecida de todo leitor apaixonado por poemas: o poema nos toma por inteiro [...]. É como se, com sua exuberância, o poema reanimasse as profundezas do nosso ser.

 [...]

As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência.

 

Por via da ressonância e da repercussão que imagens poéticas podem gerar no leitor, podemos, portanto, viver experiências poéticas através da escrita de outra pessoa. A poesia de outrem soa novamente em nós – ressoa -, ouvimos o poema, e então podemos repercuti-lo como se ele partisse agora de nós.

As ideias de repercussão e ressonância em Gaston Bachelard apontam para a possibilidade da literatura gerar alargamentos existenciais no leitor. Em uma espécie de amálgama entre escritor e leitor, um bom poema possibilita transformações nos fundamentos da experiência do mundo, ou seja,  transformações cosmológicas. Pela poesia - e nada impede que se expanda tal percepção para a prosa - podemos nos transformar profundamente, inclusive no modo como percebemos, significamos, representamos e habitamos o mundo, os lugares, nós mesmos.

Ainda, vale apontar que:

A literatura pode ser a arena possível para enfrentar temas pungentes e atuais da cultura.  Por  sua  capacidade  de  reunir  e  fazer  conviver  diferentes  vozes,  por  sua diversidade e capacidade dialógica pode acolher o debate das diferenças, da tolerância, daquilo  que  inibe,  que  assombra,  que  rechaça.  A  literatura  pode  ser  acolhimento quando,  na  voz  do  outro, encontra-se eco do  que  provoca  e  não  se  tem  coragem  de proferir em voz alta. (SALUTTO, 2019, p. 125).

 

Não seria sem sentido propor, nesse âmbito, que, se bem habitar o mundo é estar nele da maneira mais plena possível, cada esforço, insight ou atitude que nos faz estarmos mais conscientes no mundo aumentaria nossa capacidade de habitá-lo. Por via da literatura, se concordarmos com Bachelard e com Salutto, podemos ampliar tal capacidade.

          Assim sendo, o contato profundo com a literatura, seja com a poesia ou com a prosa, poderia ser de grande valia para um processo educativo (escolar ou não) preocupado com o surgimento de cosmovisões saudáveis, justas, respeitosas e aptas à coexistência, ou seja, um processo educativo voltado para o aprimoramento ético da humanidade.

 

2.2.2 LITERATURA, ATENÇÃO E ÉTICA

Até o presente momento, refletimos sobre a relevância ética do alargamento do ser por via da literatura e de seu estímulo à imaginação.

Contudo, as experiências corriqueiras do cotidiano demandam mais de nós do que referências imaginativas que nos deem a capacidade de interpretar as situações do modo mais complexo e nuançado possível - algo, como já discutido, trazido a nós pelo contato com a literatura. Se estivermos distraídos, toda a bagagem imaginativa poderá não passar de elementos difusos em uma mente dispersa.

Para iniciar este ponto de nossa investigação - a relação entre ética, atenção e literatura -, consideremos o que afirma Sam Harris (2013, p.66):

[...] considerações morais se traduzem em fatos sobre como nossos pensamentos e ações afetam o bem-estar de criaturas conscientes, como nós mesmos. Se existem fatos a serem descobertos sobre o bem-estar de tais criaturas — e há —, então deve haver também respostas certas e erradas a perguntas de cunho moral.

 

Ou seja, para que desenvolvamos qualitativamente nossos juízos de ordem ética, faz-se necessário que obtenhamos “fatos” sobre o modo como nossos pensamentos e nossas ações afetam o bem-estar das criaturas conscientes que compartilham suas existência no planeta conosco.

Essa obtenção de fatos demanda um olhar para a realidade empírica apto a perceber com acurácia seus detalhes e nuances, ou seja, demanda a habilidade da atenção.

Códigos morais, ou mesmo boas intenções, por melhor que sejam, nunca darão conta de todas as situações da vida e não gerarão atos eticamente aceitáveis se o usuário de um código moral, mesmo desejando o bem, o belo e o justo, não estiver atento para bem aplicá-lo quando for a situação adequada.

Devemos ser capazes de, na velocidade da vida real, tomarmos as melhores decisões possíveis, que, muitas vezes, incluem termos que rapidamente pesar diversas variáveis. É preciso, então, que estejamos atentos.

Vale investigar, portanto, a possibilidade de que o contato com obras literárias, além de desenvolver nossa imaginação, como trabalhado anteriormente neste artigo, também possa reforçar nossa atenção, o que apontaria, mais uma vez, para a importância da formação literária para o desenvolvimento ético da humanidade.

Uma primeira linha investigativa seria que o próprio ato de ler demanda e estimula a atenção, ao requerer foco e presença do leitor de forma contínua e sistemática. Apenas a execução constante de tal prática, a leitura, já poderia ser entendida como um exercício de desenvolvimento da atenção, dado que “a leitura literária [...] costuma estar vinculada a um exercício principalmente individual, autocentrado e solitário, que demanda atenção, esforço e concentração” (CECHINELI, 2019, p.4).

Contudo, para além da atenção ela mesma, habilidade desenvolvida pelo exercício da leitura, desejamos apontar a possibilidade de que os poemas chamados de haikais, poderiam induzir, dada sua forma e conteúdo, o esforço para uma atenção mais plena à concretude da experiência direta do mundo.

Na tradição Zen-budista japonesa, o cultivo da presença lúcida e atenta inspirou práticas dedicadas a se estar plenamente no momento presente, como a cerimônia do chá. Outra prática derivada de tal arcabouço cultural foi o haikai, poesia breve que valoriza a simplicidade e a percepção direta do instante.

 Um haikai (ou hai-kai ou haicai) é um poema conciso, que aborda temas simples, frequentemente ligados à natureza, com economia verbal e objetividade” (NUNES, 2019, p.124). Em apenas três versos, um haikai captura um momento em palavras, sem julgamentos, sem comentários: apenas a percepção atenta de um momento, de um lugar, como neste clássico exemplo do grande poeta Matsuó Bashô (2008, p.11), que viveu no século XVII:

 

Velho lago

Mergulha a rã

Fragor d´água

 

Trata-se da captação direta de uma imagem poética, o que é um exemplar exercício de fusão entre pessoa e lugar, entre mente e mundo, que tende a tornar nossa experiência de mundo mais viva, seja por um período de tempo ou por um instante.

Tal esforço de trazer a mente para o momento presente e “apenas captá-lo” pode ser entendido como uma nobre e efetiva forma de desenvolvimento de nossa atenção. Assim, o contato sistemático com haikais, parece-nos, direciona-nos para uma presença lúcida e atenta, algo necessário para a tentativa de se realizar a melhor ação possível em cada situação e, portanto, algo essencial para a ética.

 

2.2.3 AMÁLGAMA ATENÇÃO-IMAGINAÇÃO

Vimos que é preciso que se esteja atento. Isso nos centra no mundo, conectando-nos profundamente à existência concreta.

Contudo, também vimos que é preciso saber viver a complexidade de um mundo fundamentalmente múltiplo, diverso e relacional: é preciso sair do centro do mundo. A imaginação pode nos levar para fora de nós mesmos, conectando-nos profundamente à natureza complexa da existência.

          A imaginação nos amplia, a atenção nos centra. Ao mesmo tempo, a atenção permite que percebamos elementos mais robustos para que tenhamos processos imaginativos mais robustos, e a imaginação permite que direcionemos nossa atenção para elementos antes ocultos.

          Esse duplo movimento, da centração no mundo vivido e da ampliação do mundo vivido, revela um amálgama entre atenção e imaginação que alarga o ser e o aprofunda: alarga-o horizontalmente e verticalmente.

Devemos perceber as coisas como elas são e organizá-las logicamente, racionalmente, de modo a gerar ações moralmente dignas que dialoguem com o mundo realmente existente. Se assim não for - como quando, por exemplo, segue-se cegamente algum código moral de uma tradição ou ideologia - abre-se espaço para existências de natureza absurda, nas quais se pode ser imoral em nome de certa moralidade pré-estabelecida, mascarando-se a realidade com as cores e os tentáculos de certa visão de mundo pré-determinada, fazendo com que nos percamos enredados em redes linguísticas e conceituais que suplantam o mundo, e o mundo se perde, soterrado por nossas toneladas de pseudoverdades, vaidade e hipocrisia.

Dado que a atenção nos conecta ao mundo concretamente, corporalmente e materialmente existente, o desenvolvimento da habilidade da atenção é algo de extrema importância para que possamos viver nossos mundos pessoais e o mundo coletivo concretamente existente de forma consciente e moralmente aceitável.

Como desenvolver relações dignas com os demais entes do mundo se nem percebemos com alguma acurácia os envolvidos nessas relações, se não percebemos os outros e suas necessidades (às vezes, nem mesmo suas presenças)?

Como apontado anteriormente, para agirmos da melhor forma possível, não basta decorarmos um código de conduta. Mesmo que ele seja bom, sem atenção e racionalidade, não se saberá quando e como aplicá-lo. Devemos ser capazes de, racionalmente, tentar tomar a melhor decisão possível a cada nova situação. Para que isso ocorra, é imprescindível percebê-la com nitidez e reconhecer seus detalhes e sutilezas.

O aprimoramento ético de nossas cosmovisões e de nossa sociedade requer, então, o aprimoramento de nossa habilidade de estarmos atentos.

Contudo, a atenção não é suficiente. Se a atenção nos permite experienciar o mundo de forma mais plena, a imaginação nos permite ampliá-lo. Se a atenção nos permite perceber melhor as paisagens, a imaginação nos permite melhor interpretá-las. Se a atenção nos permite perceber melhor as coisas como são no momento presente, a imaginação nos permite perceber o que está além, nos colocar no lugar daquilo que não captamos diretamente pelos sentidos, como o que se passa na experiência de outro ente que não nós ou qual pode ser a consequência futura de um ato presente.

A atenção aprofunda-nos no aqui e no agora. A imaginação nos permite irmos além, para o ali, para o ontem e para o amanhã, e é preciso sabermos viver o eu e o outro, o instante e a eternidade. A atenção nos permite imaginar com mais profundidade, nos alimenta de elementos para tal, assim como a imaginação aumenta a quantidade de elementos para os quais podemos nos atentar.

Em suma, atenção e imaginação são, portanto, habilidades complementares.

Para aprofundar a consciência que possuímos sobre “o mundo”, sobre os lugares, é imprescindível não apenas estarmos atentos (podermos perceber os fenômenos/relações com acuidade), mas também podermos conjecturar para além da paisagem imediata e conseguirmos, de alguma forma, nos colocarmos no lugar da alteridade, conseguirmos ver a nós mesmos fora do centro do mundo no qual nossa percepção é central. Tais esforços são de princípio imaginativo.

O contato com a literatura e sua habilidade estrutural e fundante tanto de representar cenários em tempos e espaços diversos, quanto de traduzir as experiências existenciais ocorridas em tais tempos e espaços, ao estimular em nós, conjuntamente, a atenção e a imaginação, é, assim, essencial para o desenvolvimento ético do ser humano, tal como exposto, ainda que brevemente, no presente trabalho.

 

3.    CONCLUSÃO

A vida em sociedade exige de cada indivíduo a capacidade de reconhecer a alteridade, de perceber o outro em sua complexidade e de refletir sobre as consequências de seus atos. Contudo, nossas experiências concretas de vida são limitadas, e a diversidade de perspectivas a que temos acesso é reduzida em comparação à vastidão das experiências humanas. Nesse sentido, a literatura apresenta-se como uma via de ampliação da consciência, permitindo-nos viver outras vidas, ocupar outros lugares e compreender dramas que não nos pertencem diretamente.

Ao mesmo tempo, a leitura, enquanto prática contínua, demanda atenção. Em um mundo cada vez mais marcado pela dispersão e pela aceleração, o ato de se concentrar em um texto literário se configura como um exercício privilegiado de presença, capaz de refinar a percepção do real. Imaginamos melhor quando estamos atentos, e prestamos atenção melhor e para mais detalhes quando nossa imaginação é fértil. Tais habilidades, entrelaçadas, podem fundamentar escolhas mais lúcidas e ações mais responsáveis.

A imaginação e a atenção podem ser vistas, portanto, como fundamentais para um bom processo educativo, na medida em que podem levar o ente a novas percepções, a novas estruturações mentais e a insights transformadores de cosmovisões.

Tornarmo-nos mais atentos é talvez a tarefa mais importante que devemos assumir para melhorarmos a nós mesmos e ao mundo que nos rodeia. Sermos capazes de bem imaginar, aprimora tal esforço.

A educação, escolar ou não, precisa ter estes pressupostos em seus fundamentos. Todas as formas de conhecimento devem nos ajudar na tarefa de melhor conhecer ao mundo, aos outros e a nós mesmos para que possamos aprimorar nossa habilidade de respeitar, o que faz com que toda forma de conhecimento deva nos ajudar em nosso aprimoramento ético. Ou seja, a educação deve possuir um caráter cosmológico e uma forte ancoragem ética, sendo uma porta para o aprimoramento dos indivíduos e da sociedade.

A literatura, mais do que uma forma de distração, pode ser compreendida como um pilar fundamental dessa forma de se compreender esse processo educativo capaz de contribuir para a formação de indivíduos mais atentos ao mundo empírico, sensíveis à alteridade e capazes de construir cosmovisões mais amplas, complexas, nuançadas, críticas e respeitosas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BASHÔ, Matsuo. Trilha Estreita ao Confim. São Paulo: Iluminuras, 2008.

CECHINELI, André. Literatura e atenção: notas sobre um novo regime de  percepção no ensino de literatura. Revista Brasileira de Educação, v. 24. Rio de Janeiro: ANPEd, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/3qRT4dPv5Mrkf7wp3vyNggr/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 06 jul. 2025.

HARRIS, Sam. A Paisagem Moral: como a ciência pode determinar os valores humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

NUNES, Roberson de Sousa. Do Haikai Japonês ao Haicai Brasileiro: interpretação e performance. HON NO MUSHI – Estudos Multidisciplinares Japoneses, v. 4, n. 7. Manaus: UFAM, 2019, p. 123-132. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/38841/2/Do%20haikai%20japon%C3%AAs%20ao%20haicai%20brasileiro_interpreta%C3%A7%C3%A3o%20e%20performance.pdf. Acesso em: 03 ago. 2025.

OLIVEIRA, Karen Yasmim Alves; SILVA, Naianne Costa da; SILVA; Meiry Fernandes da. A Importância da Leitura para o Desenvolvimento Cognitivo e Social da Criança. Revista Communitas, v. 7, n. 16. Rio Branco: UFAC, 2023, p. 18-28. Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.php/COMMUNITAS/article/view/7122/4341. Acesso em: 01 ago. 2025.

POSTMAN, Neil. O Fim da Educação: redefinindo o valor da escola. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.

SALUTTO, Nazareth. Literatura, ética e alteridade. Seis proposições para a formação do leitor. FronteiraZ (Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP), n. 22. São Paulo: PUC-SP, 2019, p.114-130. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/fronteiraz/article/view/37425/28983. Acesso em: 13 jul. 2025.

 

 

 


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