Sobre o problema de buscar princípios éticos em tradições e ideologias
Sobre o problema de
buscar princípios éticos em tradições e ideologias*
Introdução
A moral vigente de uma sociedade costuma
decorrer, principalmente, de três fontes: as tradições religiosas (derivadas de
seus textos sagrados e de suas interpretações por autoridades reconhecidas), as
tradições seculares (como os costumes e hábitos de certa comunidade) e,
especialmente na modernidade, as ideologias políticas.
Tais fontes não anulam a existência de opções
morais individuais ou desviantes, mas marcam o status quo geral de cada comunidade.
O objetivo do presente ensaio é refletir sobre tais fontes - especialmente sobre seus limites -, e apontar para a necessidade de transcendê-las.
1 - Tradições religiosas
Uma das fontes mais comuns para a constituição dos padrões
morais de uma sociedade são as crenças básicas das religiões, e é por elas que
iniciaremos nossa investigação. Contudo, de antemão, é importante haver um cuidado sobre
os limites de nossa análise: a argumentação aqui apresentada não tem
como foco a crítica a uma ou outra religião específica ou mesmo à reflexão
metafísica de forma geral. Não almejamos discutir a existência de Deus, a
origem da consciência, da matéria, da energia ou das leis físicas, nem a
validade de concepções materialistas e espiritualistas. Nossa análise se detém
exclusivamente na investigação do talento de textos e códigos de conduta
pretensamente sagrados, normalmente escritos/criados entre a Idade do Bronze e
a Idade do Ferro, para construírem a melhor abordagem ética possível para
nossos dias. Nossa preocupação é apenas ética, e não metafísica, o que tornaria
o debate ainda mais complexo e nuançado.
Os textos basilares
das tradições religiosas apresentam, costumeiramente, os códigos de conduta de
tais tradições. Tais textos, por sua vez, são chancelados pelas próprias
tradições, que determinam que se não se segui-los (já que eles seriam o desejo
dos seres mais elevados do Universo), ganhar-se-ia, por exemplo, o sofrimento
eterno no inferno ou a eterna reencarnação em mundos de sofrimento.
Com tal poder de
persuasão, esses códigos têm dominado a sociedade há milênios, tanto as partes
do código que possuem verdades morais válidas, quanto as partes do código que
são moralmente abjetas, pois eles são fornecidos como pacotes prontos contendo
múltiplas regras a serem obedecidas mesmo quando são inadequadas (e,
considerando que comumente elas não são resultado de reflexões racionais
sistemáticas ancoradas na realidade do sofrimento e do bem-estar, há muitas
regras inadequadas).
Sendo
assim, os textos religiosos costumeiramente apresentam uma série de princípios
e regras que, apesar de serem moralmente questionáveis, formam seus códigos
morais, pretensamente sagrados.
Se
optarmos por delinear nossa moralidade a partir da atenção à realidade do
sofrimento e do bem-estar, ficará evidente a falibilidade moral de inúmeras
posturas religiosas, que, usualmente, defendem práticas como discriminação de pessoas ao nascer
(castas, por exemplo), xenofobia, machismo, racismo, especismo,
sacrifício de humanos e animais, perseguição/assassinato de grupos humanos
específicos (vide o caso do assassinato de albinos para a fabricação de poções por feiticeitos, a tortura e o abandono de crianças consideradas bruxas ou a guerra entre facções rivais de algumas religiões),
automutilação, suicídio ritual, guerra contra infiéis, entre muitas outras
práticas imorais.
Ainda que algumas tradições religiosas possam ter visões de mundo sábias sobre diversos assuntos e que se possa retirar valorosas discussões filosóficas, psicológicas ou mesmo éticas da história do pensamento religioso, ainda assim, o fato de alguma orientação moral estar presente em algum dos textos/costumes básicos de tais religiões não faz com que, automaticamente, essa proposta seja moralmente aceitável, nem muito menos a melhor possível. As religiões, portanto, não são fontes seguras e absolutas para definirmos nosso melhor código moral, sob o risco de mantermos práticas absurdas em nome de se manter tal ou tal tradição.
2 - Tradições seculares
Ampliando a discussão
para além das religiões, podemos constatar que as tradições seculares também
não são fontes obrigatoriamente confiáveis para a ética, já que podem conservar
todo tipo de comportamento imoral, gerando, como no caso das religiões, um fenômeno
de natureza absurda, mas imensamente comum, no qual uma pessoa pode ser imoral
em nome da defesa de certa moralidade (de certo código moral tradicional).
Incontáveis costumes infames compõem a normalidade cultural das inúmeras sociedades e comunidades existentes no mundo. Eles passam pela "propriedade sexual” de filhas por pais e padastros, por outras formas de estupro em família, pela perseguição/assassinato de grupos humanos especificos, pela amputação de pedaços dos dedos das mãos por mulheres da tribo Dani, na Indonésia, a cada vez que um membro da família morre, pelo canibalismo, pelo infanticídio, por diversas formas de escravidão, por rodeio, tourada, vaquejada e práticas similares, pelo domínio e assassinato de membros de outras espécies da natureza, entre muitos outros exemplos, como esse:
Existe na
Albânia uma venerável tradição de vendeta chamada kanun: se um homem comete assassinato, a família de sua vítima pode
retribuir matando qualquer um de seus parentes do sexo masculino. Se um rapaz
dá o azar de ser filho ou irmão de um assassino, ele precisa passar a vida
inteira se escondendo, abdicando assim de uma boa educação, de serviços de
saúde adequados e dos prazeres de uma vida normal. Mesmo hoje em dia, inúmeros homens e
meninos albaneses vivem como prisioneiros em seus próprios lares. (HARRIS,
2013, p.9).
O fato de que tal “venerável
tradição de vendeta” seja um costume estabelecido em uma cultura, que faça
parte de seu código moral tradicional, não faz desse costume algo moralmente
aceitável. As tradições, portanto, podem ser grandes empecilhos para a evolução
ética das sociedades humanas.
Assim
sendo, há um grande problema quando certas doutrinas culturais julgam que,
apenas pelo fato de um comportamento ser tradicional, ele deveria ganhar
automaticamente o rótulo de válido, cuja preservação seria uma obrigação moral.
Esse fato coloca uma interrogação tanto em posturas conservadoras quanto em algumas posturas identitárias que associam de modo automático a manutenção de tradições com a excelência moral.
3 -
Ideologias políticas
Além das tradições e religiões, outra fonte problemática,
de enorme relevância, para a formatação de códigos morais, são as ideologias
políticas. Não é nosso desejo aprofundar esse debate neste momento, mas vale
questionar quantas pessoas foram mortas, escravizadas ou violentadas em nome de
estados fortemente ideologizados, de esquerda ou de direita - fascistas,
nazistas ou comunistas - apenas no século XX. A resposta quantitativa e,
principalmente, as descrições dos horrores sistematicamente organizados em
campos de concentração, gulags, holodomor ou paredões de fuzilamento, são mais
do que suficientes para responder o quão confiável é deixar o código de conduta
de uma sociedade nas mãos de ideologias políticas.
O cuidado necessário com bases morais apresentadas por
ideologias políticas permite colocar o foco de nossa análise especialmente
sobre posturas ditas progressistas, haja vistas que posturas conservadoras ou
reacionárias costumeiramente recaem sobre os casos previamente analisados
(tradições religiosas e/ou seculares). Propostas progressistas não raramente
apontam para práticas de moral duvidosa em nome da defesa cega e inegociável de
uma visão de mundo hedonista na qual a manutenção dos prazeres e desejos
individuais estaria acima de quaisquer considerações morais sobre o sofrimento
e a insanidade gerados para obtê-los ou mantê-los.
Vale, ainda, considerar que:
As próprias
ideologias políticas de esquerda e de direita tornaram-se religiões seculares
que proporcionam às pessoas uma comunidade de irmãos com uma afinidade de
ideias, um catecismo de crenças, uma demonologia populosa e uma confiança
beatífica na virtude de sua causa. [...] A ideologia política prejudica a razão
e a ciência. Ela enevoa o discernimento, inflama uma mentalidade tribal
primitiva e desvia seus adeptos de uma compreensão mais sensata das maneiras de
melhorar o mundo. (PINKER, 2018, p.54).
E, complementando, que:
A maneira como uma
pessoa percebe o abismo entre fatos e valores parece influenciar sua visão a
respeito de quase todos os temas relevantes para a sociedade.
[...]
Tal fratura em nosso
pensamento tem consequências diferentes em cada extremo do espectro político:
conservadores religiosos tendem a acreditar que existem respostas certas a
questões sobre o sentido das coisas e a moralidade, mas só porque o Deus de
Abraão assim determina. Eles admitem que fatos comuns possam ser descobertos
por meio da investigação racional, mas acreditam que os valores têm de ser
ditados por uma voz que emana dos céus. Crença literal em escrituras sagradas,
intolerância à diversidade, desconfiança da ciência, desprezo pelas causas
reais dos sofrimentos humano e animal – muito frequentemente é desse modo que a
divisão entre fatos e valores se expressa na direita religiosa.
Os liberais seculares,
por outro lado, tendem a imaginar que não existem respostas objetivas a
questões morais. [...] o relativismo moral [...], a tolerância até mesmo à
intolerância [...] são as consequências familiares da separação entre fatos e
valores por parte da esquerda. (HARRIS, 2013, p.12-13).
Assim sendo, convém que se fuja tanto do absolutismo moral de posturas monolíticas (refratárias a aprimoramentos morais) quanto do relativismo moral de posturas que negam a centralidade da moral em nome da manutenção de desejos e prazeres (Leia mais aqui).
Conclusão
Por
tudo o que dissemos até o presente momento, é fácil concluir que é preciso
negar a aceitação automática de regras morais trazidas por tradições, religiões
e ideologias para que possamos almejar alcançar fundamentos sólidos para nossas
decisões morais. Precisamos cunhar nossa moralidade, nossos valores, a partir
dos fatos do mundo, e não de ilusões e narrativas.
Faz-se
necessário, acreditamos, que possamos aprimorar nosso pensamento moral de forma
racionalmente válida, ou seja, que possamos desenvolver uma espécie de
raciocínio moral, de forma que nossos códigos morais não sejam entregues a nós
prontos, como pacotes pré-fabricados por tradições, ideologias, textos
“sagrados” ou quaisquer outras fontes de normas dogmaticamente impostas, dado
que, quando isso acontece, as pessoas tornam-se impelidas a seguir tais códigos
mesmo quando eles contrariam aquilo que poderia ser a melhor ação possível em
cada situação.
Precisamos
consolidar, portanto, uma moralidade racional, realizada a partir de fontes de
informação confiáveis sobre os seres afetados por nossas ações, na qual cada
ato possa ser analisado em nome da busca da opção que menos gere sofrimento e
mais diminua sofrimentos já existentes ou inevitáveis.
(Esse é o tema de nosso próximo ensaio. Leia aqui)
Referências bibliográficas
HARRIS, Sam. A Paisagem Moral: como a ciência pode determinar os valores humanos. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, 305p.
PINKER, Steven. O Novo Iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, 664p.
* Revisão de excerto cortado do texto final da monografia apresentada em 2021 para a obtenção do título de especialista em Ciência e Tecnologia pela UFABC sob o título "A contribuição das ciências para o aprimoramento ético da relação entre humanidade e natureza”.
Comentários
Postar um comentário